Monday 25 August 2014

Pensamento do dia

A vida é de facto impressionante e os seres humanos são capazes de nos surpreender, tanto para o bem como para o mal, sejamos optimistas, pessimistas ou mesmo autênticos misantropos. 
Num mesmo dia, é possível:

  • dizer a uma pessoa que tem um cancro e orientá-la com a máxima urgência para a consulta hospitalar;
  • falar com uma filha sobre a doença degenerativa da sua mãe que a acamou, depois de ela ter visto a mãe quase a morrer asfixiada;
  • intercalar estas coisas com duas dezenas de consultas incluindo de grávidas todas contentes e recém-nascidos celebrados;
  • falar com uma pessoa que já tentou o suicídio mais que uma vez sobre as suas perspectivas de vida, entre ir estudar para fora e matar-se;
  • diagnosticar uma gravidez inesperada;

  • E, depois de tudo isto, ao partilhar um destes momentos, ler alguém a desvalorizar completamente a minha profissão com um displicente "MGF nem chateia muito".

Não venho para aqui defender a Medicina Geral e Familiar, ou sequer a medicina. Nem é preciso. Só quero partilhar, tanto quanto possível, a sensação que fica depois de um dia de trabalho como este. Valha-me o sorriso do senhor que, apesar do seu cancro, me diz obrigado e boa semana. Valha-me conhecer uma filha que luta com tudo o que tem e o que não tem pelo conforto da sua mãe que já não tem como se defender e me pede desculpa porque ocupei toda a minha hora de almoço a ouvi-la. Valha-me a sensação de que posso ter contribuído minimamente para ajudar uma pessoa cuja vida está no fio da navalha. Mas valham-me também os idiotas, para eu nunca me esquecer, nem por um dia, que os humanos são o trigo e o joio, a paz e a guerra, os médicos sem fronteiras e o genocídio. Somos o bem e o mal, somos o génio e a besta, somos por vezes, para nós mesmos, o tudo e o nada.

Sunday 24 August 2014

Auditoria do Tribunal de Contas às unidades funcionais de cuidados de saúde primários (4)

Continuo a análise iniciada aqui e continuada aqui e aqui.


5.4 - Contractualização e Desempenho face aos Objectivos Contractualizados

"A contratualização de cuidados de saúde primários não tem sido suportada por uma metodologia transversal que inclua a priori um estudo regional das necessidades em saúde e dos níveis de oferta precisa de serviços públicos, nem da elaboração de orçamentos (anuais/plurianuais) específicos.

O estabelecimento dos objetivos resulta mais de uma determinação unilateral pelas ARS, do que da negociação entre partes, designadamente com os agrupamentos de centros de saúde (ACES), que por sua vez os transpõem para a contratualização com as unidades funcionais (USF e UCSP)."

Nem tudo são críticas. Aqui está uma questão em que não tenho o que apontar ao TdC. Confirmo que a contractualização em muitos casos não tem reflectido o que os seus proponentes tinham em mente. Não há estudo de assimetrias e necessidades locais para guiar a proposta da tutela. Não é dada às USF (nem sequer aos ACeS pelo que ouço) para negociar as metas de acordo com o que conhecem da sua realidade. No último processo de contractualização, a tutela ofereceu um intervalo de valores para a USF determinar a sua meta, no entanto em muitos casos o intervalo era todo ele deslocado do que os profissionais pensavam ser razoável. Isto originou uma contractualização em que a USF não pode senão tentar contractualizar constantemente o mínimo ou o máximo do intervalo que lhe foi oferecido, sem real adaptação ou negociação. Isto não ocorreu em todos, houve indicadores em que a negociação entre a USF e o ACeS foi real, mas é o facto de o modelo estar a ser viciado que interessa para esta análise.


"Os indicadores contratualizados caracterizam-se por serem indicadores de processo, relacionados com os procedimentos instituídos ao nível da prática clínica, e não de resultados em saúde, diretamente relacionados com a saúde dos utentes. Embora seja expectável que o cumprimento das metas impostas para os indicadores de processo possa contribuir para a obtenção de resultados, não foram apresentados estudos que sustentassem a adequação dos indicadores escolhidos, nomeadamente demonstrando o seu efeito percursor em termos de ganhos em saúde, ou justificando a sua escolha em detrimento de outros indicadores."

Esta análise já não é assim tão simples. Os indicadores de vigilância que se relacionam com o cumprimento do Plano Nacional de Vacinação, dos rastreios do cancro da mama, do colo do útero e do cólon e recto, da vigilância do pé diabético, tal como os indicadores que se relacionam com o controlo da hipertensão arterial e da diabetes mellitus estão, à luz da evidência científica, comprovadamente relacionados com ganhos em saúde. Muitos outros há, claro, que não estão demonstrados. Desde a redução de custos com exames auxiliares e medicação, à frequência de consultas na saúde infantil, saúde materna ou planeamento familiar, vários indicadores estão relacionados com uma presunção. Se o médico se esforça por cumpri-los, isso implica chamar os utentes a consulta quando já não a realizam há algum tempo e, claro, fazer a consulta devidamente o que se presume originar ganhos em saúde. Alguns destes têm mais que ver com vigilância e saúde pública do que com a saúde individual. Outros são mesmo contestados pelos médicos por não fazerem sentido - ou por vezes por não fazerem sentido com as metas que são forçadas. Há, sem dúvida, muito que pensar e modificar nos indicadores utilizados nas USF, mas também é verdade que este trabalho está a ser feito, como se pode verificar pela diferença entre os indicadores de 2013 e os de 2014.


"Afigura-se razoável que, no processo de contratualização com as UCSP e as USF modelo A, predominem os indicadores de processo, de forma a instituir rotinas de recolha e registo da informação operacional e clínica. Contudo, não se concebe que, na contratualização com USF do modelo B, não se evolua para uma contratualização baseada em indicadores de resultados, compatíveis com o sistema remuneratório instituído, de modo a conferir um incentivo ao trabalho orientado para os resultados, em vez do trabalho orientado para os processos."

Concordo. No entanto, há que ter muito cuidado, porque a generalidade destes indicadores de resultados em saúde só se reflectem após anos de prática. Não é uma USF com dois ou três anos de boa vigilância que consegue ter impacto ao nível das amputações dos pés diabéticos. É provável que esta transição só se faça para indicadores que se refiram a mais do que um ano de actividade, o que implicaria uma nova forma de contractualização e remuneração.


"O processo de contratualização é tardio (ou inexistente), prejudicando o ciclo anual de planeamento, execução e avaliação das atividades. Nem todas as ARS efetivaram em 2012 o processo de contratualização com os ACES nem, consequentemente, estes com as respetivas unidades funcionais."

Sim. E este ano voltou a ser. A contractualização devia ser feita mal estão prontos os resultados do ano anterior. Contractualizar as metas para um ano quando já passou 1/3 ou quase metade dele não faz qualquer sentido.


"No processo de acompanhamento e avaliação do desempenho, as ARS não estabeleceram ainda  rotinas de verificações e nem foi cumprida a periodicidade de reuniões entre a ARS, os ACES e as unidades, o que permitiria uma monitorização dos desvios ocorridos e a implementação de medidas corretivas."

Em defesa dos ACeS, tem havido um esforço crescente no sentido de fazer reuniões de acompanhamento. Desconheço o caso das ARS.


"Os indicadores de desempenho económico contratualizados não têm sido aplicados, de forma transversal e homogénea, nas diferentes unidades funcionais, de modo a serem comparáveis entre si." 

Isto tem uma razão de ser: os indicadores tinham em conta o histórico de cada unidade. Já expliquei antes porque os indicadores económicos não devem ser impostos de forma cega - a transição não deve impor-se ao funcionamento da relação médico-doente e depende de factores variáveis. Nunca podemos esquecer que não há um valor de gasto per capita que se reconheça ser o correcto. Há um encontro da necessidade de poupar com a evolução da evidência científica que torna obsoletos certos tratamentos ou vigilâncias com exames auxiliares mas simultaneamente demonstra a indicação de outros, mais novos e mais caros para as mesmas ou outras situações. Assim sendo, não podemos nunca por os médicos a trabalhar com um tecto fixo ou com uma redução forçada de gastos na sua lista. Basta colocarmo-nos no lugar do utente para ver como isto não iria resultar - para isso vou basear-me na minha experiência pessoal:
Imagine-se um utente habituado a tomar um medicamento que já não está indicado e a fazer um exame de 6 em 6 meses que agora já só se recomenda de 2 em 2 anos para vigiar o seu nódulo da tiróide. Ponha-se este utente, em 2013, plena crise económica, numa consulta com o seu novo médico, na USF onde se pode finalmente inscrever. Na primeira ou segunda consulta, o médico, depois de 10 min a falar com ele, praticamente sem o conhecer, informa-o que terá que parar aquele medicamento, que já não faz sentido tomar. Tem ainda tempo para se recusar a fazer o tal exame, porque basta repeti-lo daqui a dois anos. O utente aproveita para pedir para fazer exames de rotina, que o médico prontamente lhe diz que não vale a pena, porque isso até nem tem grande evidência que o sustente. Resultado? Poupou-se o dinheiro e perdeu-se o utente, porque em 20 minutos e em uma ou duas consultas, não há uma relação de confiança que contrabalance a dúvida. O utente sai convencido que o médico está a obedecer às ordens do governo, a poupar à custa da sua saúde. Vai fazer os possíveis para não voltar, vai gastar dinheiro a tentar fazer à sua conta os exames que puder ou indo de médico privado em médico privado, porque está convencido que o SNS não o vai ajudar. Ganhamos ou perdemos? Eu não tenho dúvida que perdemos.
Ter em conta estas situações é essencial para analisar a redução de gastos nos cuidados de saúde primários. Uma redução que é mais lenta, mas conseguida sem ser à custa da perda da confiança do utente permite ao médico fazê-la cada vez mais rápido, mantendo a relação com o utente e com isso originando outros ganhos em saúde.


Auditoria do Tribunal de Contas às unidades funcionais de cuidados de saúde primários (3)

Continuo a análise iniciada aqui e continuada aqui.



5.3 - Incentivos, compensações pelo desempenho e suplementos nas USF


"Os incentivos institucionais e financeiros atribuídos às USF e aos seus profissionais não acompanham o grau de eficiência económica verificado. Tendencialmente, são as USF com maior número de anos de atividade, que correspondem a USF do modelo B, que beneficiam de incentivos com maior expressão financeira."



Isto resulta de um misto de duas situações que vistas desta forma só se confundem. Por um lado, é importante ver que os objectivos são individualizados para cada ACeS e cada USF, o que quer dizer que comparar entre elas sem ter isso em conta não faz sentido. Por outro lado, faz plenamente sentido que as USF com mais anos de actividade tenham mais facilidade em atingir os seus objectivos - já têm os objectivos integrados na organização da actividade, conhecem a sua população e a sua população já começa a perceber a diferença entre a USF e o antigo centro de saúde - mesmo que esses objectivos sejam em alguns casos sempre crescentes.
Vale a pensa explicar aqui porque se justifica esta situação de individualização de metas, abordando mais especificamente as de desempenho económico, que são as que o TdC parece focar.
Ao contrário do que parece subjacente a esta análise, o país não é homogéneo. As várias regiões do país têm populações que diferem mais do que nas coordenadas geográficas. Uma dessas diferenças é nas suas expectativas em relação à saúde e ao sistema público de saúde. Outra é na sua relação com o seu médico e enfermeiro. O que quer isto dizer? Que não igualmente fácil habituar uma pessoa de Lisboa, da Maia, de Vila Real ou de Portimão à vigilância possível e desejada numa USF. Não é igualmente fácil que essas pessoas vão a uma consulta com regularidade. Não é igualmente fácil que mudem os seus hábitos, que façam os tratamentos novos conforme são propostos, que façam as análises quando é necessário. Claro que aqui podemos facilmente dizer que todas poderiam fazer o mesmo se obrigassem os utentes a mudar para o que é preciso, nem que fosse negando-se a prolongar receituário, por exemplo. Só que só diremos tal coisa se não formos médicos e formos pouco humanos. Porque a relação com as pessoas, a eficácia do modelo do médico de família (inerente às USF), tem por base a confiança, e essa confiança, essa relação médico-doente, não se estabelece se o médico mudar tudo o que fazia ou que o colega anterior fazia de um dia para o outro. Em especial quando, aos olhos do utente, tudo isso se deve a um roubo do governo, como tantas vezes ouço.
Por tudo isto - e tendo em conta que a duração das consultas é limitada - as transições que nos permitem as afamadas poupanças não são feitas de rasgo, de um dia para o outro, mas em negociação com o doente, quando ele compreende porque está a parar de fazer o medicamento X, a substituir Y por Z, a abandonar a sua vigilância semestral de um nódulo que, para ele, era muito importante, mesmo que o médico agora saiba que não necessita de tal cuidado.
Mas não me fico por aqui. As poupanças também dependem da actualização científica constante dos médicos, o que pode fazer variar as coisas mais um pouco.
Por fim, as poupanças também são alteradas pela quantidade de utentes que, estando inscritos, continuam a recorrer a cuidados hospitalares e ambulatórios, em especial os privados. Um exemplo típico é o que se passa actualmente, em que a crise empurra muita gente que antes recorria esporadicamente a privados para o SNS, sendo que o médico de família, tendo os mesmos utentes, vai ter necessariamente mais trabalho e mais gastos.

Há grandes problemas com os indicadores de eficiência das USF, mas a sua individualização a cada unidade é o pouco que estaria bem feito, se fosse mesmo levado a cabo. A realidade é que a negociação é frequentemente um fantochada e cada unidade vê-se forçada a cumprir o que o ACeS permite e o ACeS forçado a cumprir o que a ARS mandou e por aí fora. Adiante. Deixo para outra altura uma análise mais específica destes indicadores, mas os comentários acima já despontam o véu de todos os problemas que eles trazem.


"O sistema remuneratório dos profissionais das USF de modelo B é complexo e prejudica a perceção das remunerações realmente auferidas pelos vários profissionais, uma vez que conjuga várias componentes remuneratórias, nomeadamente: 
  • o ordenado base da carreira e da categoria; 
  • os suplementos relativos: 
    • ao regime de exclusividade
    • à quantidade e perfil de utentes inscritos, ao eventual alargamento do período de funcionamento ou da cobertura assistencial ou à realização de cuidados domiciliários, neste último caso atribuível apenas ao pessoal médico; 
    • às funções de orientador de formação e de coordenador da equipa, atribuíveis aos profissionais médicos. 
  • compensações pelo desempenho: 
    • pagas aos médicos em função da realização e registo de atividades específicas realizadas aos utentes; 
    • pagas aos enfermeiros e administrativos, a título de incentivos financeiros; 
    • associadas ao trabalho realizado referente a uma eventual carteira adicional de serviços." 
Verdade, o sistema é complexo. Também é complexo tentar perceber porque o TdC se preocupa mais com o facto dele prejudicar a percepção da remuneração do que com o facto de ele ser mais justo porque tenta adequar partes da remuneração às várias actividades que podem ser feitas independentemente umas das outras.



"Não resulta claro, se os funcionários públicos, enquanto profissionais das USF, são retribuídos fundamentalmente pelo seu desempenho, dependendo da avaliação dos resultados obtidos, ou se são retribuídos por suplementos remuneratórios que correspondem a aumentos salariais que visam remunerar o ónus que possa estar associado às atividades que desempenham no modelo de organização e funcionamento que foi criado para as USF."


Aqui concordo com o TdC. No que toca à definição legal, o sistema de remuneração das USF confunde-se por vezes entre suplementos e prémios de desempenho. Uma maior clarificação e simplicidade, nesta questão, seria óptima. Quanto aos médicos, em relação às actividades habituais, o sistema já é claro , pelo menos na prática (se não na definição legal), senão vejamos:
  • tem uma redução do salário base inerente ao modelo; 
  • esse vencimento mensal é suplementado por um cálculo de unidades de crédito, até um máximo de 20, que podem vir de duas fontes: 
    • o total de utentes inscritos na sua lista, acima de um determinado valor, e de acordo com a sua idade - o que corresponderia a um suplemento por maior ónus; 
    • as actividades específicas cumpridas no ano anterior, que correspondem a cumprir parâmetros de boa vigilância para alguns doentes e fazer o seu correcto registo - o que corresponderia a um prémio de desempenho. 
  • para limitar o tamanho da bonificação de vencimento que um médico pode atingir, sem diminuir o valor do cumprimento de cada parte, as duas concorrem para preencher o tecto de 20 UC. 
    • isto permite que um médico possa atingir o máximo de suplemento seja por se propor a vigiar muito mais pessoas seja por vigiar extremamente bem as que tem (sendo que não pode ter listas inferiores a X e deixa de ser beneficiado a partir de Y utentes, para que não haja deturpação da intenção). 
De resto, os suplementos por ser coordenador relacionam-se com o facto de este ter funções delegadas do director executivo do ACeS e portanto são de ónus, tal como os que se referem a carteiras adicionais de serviço que correspondem à criação de uma nova valência na USF, os relacionados com os domicílios correspondem a prémios de desempenho, dado serem calculados pelo número de domicílios realizados.



"O pessoal médico é remunerado duas vezes, pelo mesmo utente, através de duas diferentes componentes remuneratórias, situação que não ocorre quanto aos restantes profissionais. De facto, o aumento da lista mínima de utentes de cada médico, para além de permitir auferir suplementos, permite também auferir, por idêntica base de incidência, compensações pelo desempenho, decorrentes do registo das atividades específicas realizadas aos mesmos utentes.

Note-se que o trabalho acrescido resultante da vigilância adequada de determinados utentes da lista de cada médico é um ónus que já é compensado pelo suplemento relativo à dimensão e perfil de utentes inscritos, que atribui maior peso a determinadas faixas etárias."


A ignorância de quem fez o relatório está novamente à vista desarmada. Porque claro que, se o médico é remunerado por várias avaliações, vai acabar por ser duplamente remunerado em relação a alguns doentes, porque neles se centram vários cuidados importantes. Mas não é verdade que uma das remunerações já valesse pelas duas compensações. Passo a explicar:
  • A primeira remuneração tem a ver com trabalho regular de vigilância de qualquer utente, independentemente da doença. Valoriza mais alguns, pelo facto de habitualmente terem mais doenças ou queixas ou serem mais utilizadores; 
  • A segunda - a das actividades específicas - é um prémio por o médico ter ido além daquilo que o doente cumpre e necessita per se e ter-se esforçado para que o utente cumprisse certos critérios de vigilância, seja de visita regular no caso das crianças seja de visita regular, vigilância analítica e atingimento de alvos terapêuticos, no caso de diabéticos e hipertensos. 
São, como qualquer utilizador dos serviços reconhece facilmente, duas atitudes muito diferentes dos médicos de família, que implicam cuidados diferentes e esforços diferentes e que, como expliquei acima, têm um tecto a partir do qual não dão ao médico qualquer benefício remuneratório. Claro que, de resto - como demonstra bem o TdC - elas estão relacionadas: os utentes mais idosos correspondem a mais unidades ponderadas no cálculo da lista de utentes e mais provavelmente são diabéticos e hipertensos, pelo que possibilitam ao médico ter o benefício associado às actividades específicas. O mesmo acontece para as crianças. Mas atenção, o médico podia perfeitamente aceitar estes utentes na sua lista e vê-los em consulta - fosse de recurso fosse programada - mas não se esforçar por fazer o registo e as consultas nos tempos que os controladores desejam, tal como podia ter estes utentes na lista mas não conseguir que eles alcançassem os alvos terapêuticos. Portanto os benefícios são duplicados em relação ao utente porque representam duas partes diferentes do esforço de trabalho que ele implica.

Há aqui uma discussão interessante, que é a questão da relação da boa prática médica com o pagamento por performance, algo para que eu próprio não tenho respostas definitivas. Se presumirmos que o médico pode optar por fazer sempre o que comanda a boa prática, a noção de incentivo deixa de fazer sentido. Quase que se poderia fazer o contrário e descontar do vencimento de um médico nos indicadores em que ele não se adequasse ao que se considera a boa prática. A questão é que isso demonstra um enorme desconhecimento do que é a boa prática e a profissão. A medicina está em constante evolução e a sua prática de acordo com o que a evidência recomenda exige um esforço crescente do profissional para estar actualizado e para implementar as mudanças na sua prática, o que inclui mudar cuidados aos doentes. Ora, se é verdade que se o médico tivesse apenas um doente lhe poderíamos exigir boa prática médica constante e imediata, quando a realidade é o médico assistir centenas de doentes, por entre questões agudas e crónicas, com consultas de duração e frequência necessariamente limitadas, isso é utópico. O trabalho pago por performance é um incentivo ao esforço do profissional em conhecer e cumprir as normas e recomendações, em esforçar-se por demonstrar aos seus utentes a evidência que as suporta e que o levará a mudar comportamentos ou vigilâncias. Lembro aqui que em relação a muitos dos indicadores, o médico está dependente de conseguir convencer o utente, porque a pessoa ainda tem a liberdade de cumprir ou não o que o médico aconselha. Muitos dos indicadores implicam que o médico reveja listas de utentes para verificar o cumprimento de certos actos, como é o caso dos programas vacinais ou de rastreio, preparando a sua agenda e contactando os utentes para que os venham cumprir, muitas vezes com ganhos individuais mas também ganhos para a saúde pública. Quem não trabalha em USF frequentemente desconhece a natureza dos indicadores, mas em geral eles não verificam se o médico passou o exame ou o antibiótico ou analgésico certo para determinada doença. Verificam se o médico viu duas vezes por ano cada doente diabético, se chamou quase todas as suas utentes para fazer citologia cervicovaginal a cada três anos, se chamou as mulheres na idade certa para fazer mamografia, se as suas crianças cumprem o número e momento de consultas de vigilância conforme o recomendado, etc.. Isto é uma introdução à discussão, mas chega para o comentário a este relatório do TdC.


"Os médicos recebem ainda acréscimos remuneratórios pelas funções de orientador de formação do internato da especialidade de medicina geral e familiar e de coordenador da equipa da USF. No caso de o profissional estar no topo da carreira médica (assistente graduado sénior) a atribuição destes acréscimos suscita dúvidas dado que, por um lado, a formação e a coordenação poderão já estar compreendidas no seu conteúdo funcional e, por outro, por se encontrar no nível remuneratório máximo da sua carreira." 

Deixo a discussão sobre o suplemento relacionado com a formação para outro momento, tem muito que se lhe diga, desde o incentivo à formação, ao desejo de orientadores de qualidade, à diferença entre os médicos de família e os de outras especialidades, etc.. De resto, estas remunerações têm que ver com uma questão simples: se numa USF houver 3 médicos no topo da carreira, como se faz a distinção entre o que de facto exerce a função de coordenador e os outros? Pelo suplemento remuneratório.


"O regime de suplementos (associado a uma lista de utentes inscritos incluindo os não frequentadores), incentivos e compensações pelo desempenho, tal como se encontra definido, bem como a operacionalização de todo o processo instituído (sistema de controlo complexo e com vários intervenientes), merece reservas por ser de difícil perceção, carecer de suporte fiável e da correspondente demonstração de ganhos de eficiência que o justifiquem." 

Pelos vistos, a percepção não é assim tão difícil e os próprios gráficos do TdC ilustram os ganhos de eficiência do modelo de USF (veja-se o post anterior). Quanto a suporte fiável para verificação, já há alguns mecanismos mas sou a favor de melhor fiabilidade e facilidade de verificação.






"A análise do vencimento dos profissionais médicos, durante os anos de 2011 e 2012, revela que a remuneração dos médicos a exercer funções nas USF modelo B acresce em média cerca de € 2.750 (+80%) à remuneração dos médicos que exercem a sua atividade nas UCSP – € 2.587 (+72%) face aos médicos das USF A, colocando-os num patamar remuneratório completamente diferente.

A estrutura remuneratória aplicável aos profissionais que integram a equipa multiprofissional da USF modelo B, tal como está concebida, propicia um aumento expressivo da remuneração dos profissionais, que pode não estar justificado pelos eventuais ganhos de eficiência obtidos, uma vez que estes resultam de uma redução dos custos unitários com medicamentos e MCDT prescritos, cuja adequação não se encontra demonstrada."

Aqui tenho dois comentários a fazer.
O primeiro, notar que o TdC começa por fazer comparações tendo em conta o vencimento bruto potencial máximo (por sinal quase utópico dada a realidade da profissão), o que logicamente amplia a percepção de diferença entre os dois modelos, contribuindo para o que analisam de seguida - aí já tendo em conta a diferença de salários médios - a distinção da remuneração entre profissionais que em teoria estão contratados para um mesmo serviço. Concordo nesta questão com o TdC, a diferença entre o que se paga aos profissionais das USF B e os profissionais das UCSP é injusta. Claro que as comparações, sabendo nós que são dois modelos de trabalho e exigência diferentes, não devem ser feitas com esta leviandade. A verdadeira justiça aqui, após ter-se verificado que o modelo de USF funciona, oferece melhor satisfação dos profissionais e mais rápida progressão dos indicadores controlados para os valores desejados, com ganhos económicos e em saúde, seria voltar a discutir o modelo com os médicos que têm estado em USF e os que têm estado em UCSP e promover uma reforma de todos os cuidados primários. Só assim se eliminará a diferença, mantendo-se apenas a que há entre os modelos A e B das USF, na transição, dado que o objectivo é que todos terminem a trabalhar em modelo B. Já expliquei antes porque não faz sentido sequer fazer comparação dos vencimentos do modelo A e B, e basta para isso conhecer o enquadramento legal da criação de uma USF.
O segundo, fazer novamente referência ao problema de ter um TdC a fazer estas contas. Voltam a comparar os modelos USF e UCSP tendo em conta apenas os ganhos em eficiência, esquecendo-se que as USF, por demonstrarem melhor vigilância de certos grupos de doentes, também originam a longo prazo grandes ganhos em saúde que se reflectem, se assim o quiserem procurar, em grandes poupanças para o SNS.


"Note-se que estas assimetrias, afetando a equidade horizontal, podem eventualmente constituir um “desincentivo” e transformar-se em desmotivação por parte dos profissionais que não recebem nenhum acréscimo remuneratório, que no limite se pode repercutir nas condições de acesso, com o aumento de tempos de espera, no modo de atendimento e no limite, na qualidade dos cuidados prestados aos utentes."


Aqui concordo com o TdC. Já propus atrás qual seria a solução para este que é um problema de todas as reformas que começam por projectos piloto que se vão propagando de acordo com a vontade dos profissionais e do governo.


Termino com mais uma situação em que o TdC se esquece que os suplementos originados pelas UC relacionadas com as actividades específicas (que expliquei acima) só têm efeito à posteriori:

"Efetivamente, o modo de cálculo, de atribuição e de pagamento não traduz uma questão formal ou meramente processual, antes materializa as características dos prémios de desempenho. No caso dos profissionais de enfermagem e assistentes administrativos, os incentivos geram uma motivação extrínseca direta, uma vez que a retribuição só acontece após a realização e avaliação dos resultados ou melhor, o pagamento verifica-se a posteriori, no ano seguinte, a partir da validação da pontuação obtida com a realização, ao longo do ano anterior, dos indicadores contratualizados. Porém, caso se alterasse o modo de processamento e pagamento destas compensações aos médicos, introduzindo-se a característica da contingência, o sistema remuneratório dos profissionais das USF do modelo B tornar-se-ia internamente mais equitativo e justo."

As actividades específicas são calculadas em relação à actividade do ano e reflectem-se no suplemento ao ordenado mensal do ano seguinte. As unidades ponderadas referentes à lista de utentes são as únicas que podem alterar a remuneração mensal imediatamente (embora isso aconteça sempre com atraso), mas essas são as que o próprio TdC caracterizou como suplemento por ónus e não prémio de desempenho.
De resto, concordo que esta diferença no momento de pagamento não faz qualquer sentido. Ou o desempenho se reflecte no vencimento mensal de todos os profissionais no ano seguinte, ou se concentra e se oferece como prémio num momento único. Na prática, teria que ser a primeira opção, caso contrário as actividades específicas teriam que ser separadas das unidades ponderadas pelo tamanho da lista - lembro que neste momento elas competem para um tecto máximo pelo que têm que ser recalculadas em simultâneo constantemente.

Art (50)



You are my sunshine, my only sunshine,

Wednesday 20 August 2014

Tapar o sol com a peneira - os médicos cubanos, os media e o governo

Desde que a questão dos médicos cubanos voltou "à baila", têm-se multiplicado as opiniões e análises desta suposta solução, mas raramente com a correcção e profundidade necessárias. Vou tentar separar os vários problemas para esclarecer a confusão:

 - o primeiro problema que se põe é a contratação de profissionais a Cuba sabendo que eles não recebem a devida remuneração porque o estado lhes fica com o dinheiro. Claro que fazemos isto noutras situações (como alguém dizia, compramos roupa que sabemos que é feita por crianças exploradas), mas isto é um contrato bilateral entre o estado português e o cubano. Se respeitássemos os nossos valores democráticos e humanos, nunca permitiríamos que assim fosse. A vinda de médicos cubanos deveria implicar o pagamento directamente aos próprios. O estado cubano beneficiaria com as remessas, como em qualquer outro caso de emigração, se quisesse. Esta é, claramente, uma questão importante mas separada da restante problemática;

 - os médicos cubanos não são especialistas. Ao contrário do que dizem os jornais e a ACSS, estes médicos não são de medicina geral e familiar (MGF), são médicos sem especialidade. Isto quer dizer que os utentes não têm médico de família coisa nenhuma, os utentes têm um médico que os atende mas que não tem a formação e as competências adquiridas ao longo dos quatro anos de especialização em MGF. Isto falsifica os números, mas, mais importante que isso, é uma falta de respeito para com os especialistas em MGF, engana os utentes e mantém uma situação de desigualdade. Há utentes com médico de família e utentes com médico não especialista a pensar que têm médico de família, para além dos que nem isso têm.

 - por vezes confunde-se isto com um insulto à sua competência técnica, mas não podíamos estar mais longe da verdade. Um médico de família não tem competência para exercer Cirurgia Geral nem Hematologia. Um clínico geral não tem competência para exercer MGF. Pode ser um óptimo clínico geral, mas não é um médico de família.

 - a questão dos gastos do estado tem sido sempre mal vista. O economista Pedro Pita Barros fez uma análise, onde tentou comparar o valor que o estado paga pelo médico cubano e pelo médico de família português mas que tem erros importantes:
  • a comparação só pode ser feita com médicos portugueses sem especialidade, dado haver uma diferenciação na remuneração dos especialistas de acordo com as suas competências, como a Ana explicou aqui e aqui;
  • o preço do médico cubano tem que incluir o que o estado gasta com a estadia e deslocação, como o próprio Pedro Pita Barros indica no seu post;
  • o preço do médico português fica diminuído se tivermos em conta que, do salário bruto que está a ser comparado, o médico paga IRS (que, portanto, reverte para o estado);
  • há um suposto suplemento remuneratório relacionado com os clínicos gerais que faziam atendimento em centros de saúde - Portaria nº 410/2005, de 11 de Abril - que desconheço se ainda se aplica, tal como desconheço se ainda há clínicos gerais portugueses a ocupar a função de médico de família em centros de saúde - agradeço que alguém me esclareça em relação a isto;
Posto isto, parece claro que o médico cubano sai mais caro que o médico português, se comparados os não especialistas, e mesmo se erradamente comparado com muitos dos especialistas em MGF.

 - a questão do vencimento que o médico recebe pelas funções realizadas é relevante num ponto. A presumir que o estado paga por função e adapta às necessidades de contratação, ou seja, que está a pagar a estes médicos para serem clínicos gerais e prestarem atendimento a certas populações onde não há médicos de família, têm que oferecer as mesmas condições remuneratórias aos portugueses. Não pode estar com isto o governo a tapar buracos para depois diminuir a imagem dos médicos portugueses, ao estilo do que se tem visto, dizendo que eles não queriam mobilizar-se para o interior mas os de Cuba vieram. Ora, antes disso, deve-se oferecer condições semelhantes a qualquer candidato equivalente àquela vaga, venha ele de Portugal, da Alemanha, da Argentina, da Malásia ou de Cuba.
Isto é especialmente relevante tendo em conta que o governo negociou com os médicos os novos contratos em que, desde 2012, um médico de família - especialista! - a iniciar carreira em Portugal recebe 2746,24 € brutos. Ora compare-se isto com o oferecido no contrato bilateral com Cuba.

Wednesday 13 August 2014

O que sabemos sobre a visão individual das cores e as questões que isso levanta

Como sabemos que a minha visão de uma cor é igual à tua? Sabemos que ambos identificamos o vermelho e o verde e o azul (com excepção dos daltónicos), mas não sabemos que o que eu vejo e identifico como azul é o mesmo que tu vês e identificas como azul. Esta ideia, de que nós não sabemos exactamente como as outras pessoas percepcionam certas coisas e de que não conseguimos transmiti-lo, suscita muitas questões interessantes. Vale a pena ver e ouvir (em inglês):





(descoberto através do IFLScience)

Saturday 9 August 2014

Über, Volume One [Enhanced Edition] by Kieron Gillen and Caanan White

I've been following Kieron Gillen's comics ever since I read his Journey into Mystery. I haven't read Phonogram - yet - but I've read his Uncanny X-Men, his Young Avengers and now his Iron-Man (and his Avengers vs X-Men: Consequences, which was the best part of the event) and I'm going to read The Wicked and the Divine. There is something about his take on the story or the characters, something about what he likes to explore and how he explores it that appeals to me. Reading Gillen, much like Jonathan Hickman, Brian Wood or Haden Blackman, makes for a different view of a recognizable marvel universe. This led me to pay some attention to the announcement of Über, though it ended up showing me a new Gillen.

I like art that references Nazism and the Second World War, it's something we still need to learn from, with suffering that we need to bring to the present, to each one of us humans. Few events on our recent history are so full of revelations on what humanity is and how far each human is able to go in pursuit of what he wants or believes. On the other hand, I fear that too many fictional pieces about it may turn it into a story, more than history, possibly creating a barrier to a recognition of ourselves as its agents.

Treading on the edge, Über wins its gambit, because Gillen and White take it seriously. The story starts with history and becomes alternate history, at a point where the creation of a kind of super[über]-men is able to change the course of the war before Berlin falls. The reader follows what happens to certain people key to the creation and deployment of these human weapons and they take us right to the top of the hierarchies driving the war in Europe, Churchill and Hitler, as they deal with these unpredictable events. Meanwhile, three developments stand out:
 - the military types, as the war effort is forever changed, how they follow or betray principles, what drives each one of them and how that is reflected on the battlefield;
 - the war, as much as it is changed with the übermensch, being just as it always is - suffering, sweat, blood, tears, fear, terror, death - war;
 - the übers themselves, as the authors explore being living weapons in the middle of a world war and how that relates to each one's previous life and personality.

Simultaneously, we get espionage and then some science fiction, as we get to know what is behind the creation of these super-men, something we know is going to keep being developed at the same time as, historically, the Manhattan Project would be on the go.

Caanan White's art - one I'm sure wouldn't call to me if I looked at it randomly - ends up being an essential part of what makes this such a good depiction of a fictional war that started with a very real conflict. There is no special effect in the representation, no minimalist drawing, no metaphorical death or character. Caanan White gives us people, far too real people, as they do and suffer the worst humanity has to offer.
The enhanced edition I got (because some friends really know what kind of presents I like) brought with it a few other surprises, including interviews with the authors, a text about Über, some of Kieron Gillen's thoughts about each of the pages, and finally some of White's art before coloring - I'll tell you this, I think I'd buy Über illustrated only by this original drawings, it's that good.

The only real negative point I can speak of is that the difference in storytelling from the first to the second half of the book is far too noticeable. The good news is that it keeps getting better.


I highly recommend Über as an alternate history and sci-fi World War II comic that has a lot to teach, to explore, to make the reader feel as it tell an enticing story. This first part ends as... well, prepare yourself for the end of the first volume. I'm waiting for the second.

(portuguese translation of this review to come)

Thursday 7 August 2014

Auditoria do Tribunal de Contas às unidades funcionais de cuidados de saúde primários (2)

Continuo a análise iniciada aqui.


5.2 - Análise de custos: comparação USF vs UCSP (centros de saúde tradicionais)

"Nas USF do modelo B, as poupanças significativas obtidas no que respeita aos custos unitários com medicamentos e com MCDT, sobretudo face às UCSP, são em parte absorvidas pelos maiores custos com pessoal, particularmente se considerado o custo por utente utilizador. Dos cerca de €27 euros por utilizador poupados em termos de prescrição de medicamentos e MCDT, cerca de €18 (66%) são absorvidos por aumentos dos custos com pessoal.

Não havendo avaliação dos eventuais efeitos das poupanças obtidas, na prescrição de medicamentos e MCDT, nos resultados em saúde, nem formas de aferir a razoabilidade dos níveis de prescrição de cada unidade, dada a inexistência de padrões clínicos de referência, não se pode concluir que os custos unitários mais baixos apresentados pelas USF representem um ganho efetivo.

Acresce que as diferenças nos custos unitários com medicamentos e MCDT devem ter uma importância relativa em termos da avaliação das unidades funcionais ou da avaliação da eficiência do modelo de gestão das USF, dado que os níveis de prescrição tenderão a convergir para um nível adequado, independentemente da unidade funcional em questão, a menos que as diferenças se justifiquem em fatores de contexto, nomeadamente as características da população servida. Ao comparar diretamente os custos unitários, interessa pois enfatizar as despesas com pessoal e relativizar os custos com medicamentos e MCDT. Note-se que se apurou um diferencial significativo entre os custos com pessoal nas USF modelo B face aos custos das UCSP e sobretudo aos custos das USF modelo A."

Portanto, o próprio TdC demonstra que neste momento as USF poupam mais do que o que gastam a mais com pessoal, ou seja, diminuem os gastos do SNS. Questiona entretanto se esta redução à custa de medicação e meios complementares de diagnóstico é correcta do ponto de vista da saúde, que se vê incapaz de aferir pela falta de padrões clínicos de referência. Pois é, isto da saúde é mais complicado que somar e subtrair e o que é exigido às USF é que reduzam os custos para um valor x por utente inscrito, seja lá como for. Só podemos confiar que os médicos o façam pela reavaliação constante das indicações das várias medicações dos seus utentes, da sua opção pela forma mais barata de obter a mesma eficácia de tratamento, e que a limitação à prescrição de exames não ultrapasse os limites do razoável.
Por outro lado, é um facto de que se pode prever que as UCSP venham, em parte, a conseguir reduções de custos nestas áreas. Mas é por isto que vale a pena lembrar ao TdC que as UCSP e USF não diferem só em nome e sistema remuneratório. Nas USF, onde se trabalha com lista de utentes, é muito mais provável conseguir-se esta actividade bem planeada do que nas UCSP. E mais, faltou ao Tribunal de Contas ter em conta - vejam lá - que as USF podem ter outros efeitos benéficos, por exemplo ao nível dos resultados em saúde, na qualidade de vida dos seus utentes e nas poupanças do SNS a longo prazo pelo melhor seguimento de certas doenças. Antes de comparar investimentos com somas e subtracções, é preciso perceber todos os resultados de cada parte. Para já, o que podemos dizer é que as USF poupam dinheiro ao mesmo tempo que cumprem indicadores pelo que seriam, nesse sentido, o modelo a seguir. Outros efeitos só poderão ser avaliados a longo prazo.


Segue-se a comparação de custos entre os três modelos:






"Nas USF modelo B os acréscimos à remuneração do pessoal médico representam 203% da remuneração base recebida e os acréscimos à remuneração do pessoal de enfermagem e assistente representam 95% e 82% da remuneração base auferida, sugerindo que existe alguma desproporção entre o valor dos salários base e os valores das restantes componentes remuneratórias."

Estes gráficos confirmam o que se disse antes. Estamos a pagar mais ao pessoal que consegue menos gastos em saúde (se tivermos em conta que as USF modelo A são modelos de transição para B e não têm estes resultados por si só).
Aqui é necessário lembrar duas coisas.
A primeira é que não há qualquer problema nesta desproporção entre a remuneração base e os suplementos, até porque é mais próximo da meritocracia que tanto se apregoa. Desde que o salário base seja decente, não vejo qualquer problema em deixar grande parte da remuneração para os suplementos por ónus ou por desempenho.
A segunda é que não se pode presumir, como o TdC faz, que estes resultados podiam ser conseguidos sem os suplementos. A não ser que se esteja a ponderar forçar os médicos e utentes a poupar à força do chicote. É que se esquece insistentemente que este suplemento que o médico recebe caso consiga manter os restantes indicadores e gastar menos que x é uma passagem do ónus da decisão para o médico, de forma que ele negoceie com os seus utentes a progressiva alteração da sua medicação, da sua vigilância, das suas expectativas, porque se não o fizer é o próprio que não ganha (e o SNS que perde). Um modelo diferente implica ter um tecto de gastos e os médicos passarem o ano a cortar em tudo o que podem para não serem disciplinados ou demitidos ao final caso ultrapassem o limite de gastos. É isto que queremos? Obviamente que não.
Mais sobre isto na análise do próximo ponto.

Wednesday 6 August 2014

Auditoria do Tribunal de Contas às unidades funcionais de cuidados de saúde primários (1)

Na sequência da notícia na SIC e desta peça do Público, decidi-me a ler pelo menos o sumário executivo da auditoria do Tribunal de Contas (TdC) às unidades funcionais dos cuidados de saúde primários. Deixo aqui algumas citações do dito e comentários meus.

5.1 - A evolução dos centros de saúde e a reforma dos cuidados de saúde primários

"Continuam a subsistir nos centros de saúde tradicionais (UCSP), a nível nacional, situações de utentes inscritos sem médico de família que, em dezembro de 2012, atingiam 1.657.52639 utentes, apesar da diminuição de 10,21%, face ao ano anterior. 
Os resultados alcançados com a criação de USF, que se traduziram na atribuição de médico de família a 569.580 utentes, foram insuficientes para compensar a diminuição global do número de médicos de família, pelo que, desde a implementação das USF, após 2006, o número de utentes inscritos sem médico de família cresceu 24%. (com exceção do ano de 2012)"

Ao mesmo tempo que diz que a reforma não funcionou no sentido de dar médico de família a todos os utentes, o TdC esquece-se, por um lado, de interpretar os resultados de 2012 e por outro do facto deste governo ter limitado a progressão da reforma na criação e evolução das USF (algo que o próprio refere noutra parte do relatório).


"O modo instituído de atribuição de um médico de família pode condicionar a liberdade de escolha dos utentes e causar assimetrias de acesso, consoante os utentes estejam, ou não, integrados nas listas dos médicos de família e consoante estes profissionais desempenhem funções numa UCSP, numa USF do modelo A ou numa USF do modelo B."

Daí que o propósito da reforma seja levar a uma transformação progressiva de todo o esqueleto dos cuidados de saúde primários em USF com listas de utentes por médico e enfermeiro. Quanto ao resto, já se viu que entre os modelos A que pretendem evoluir e os modelos B os resultados assistenciais não diferem significativamente, pelo que deixa de haver tal assimetria. A que resta é inerente a um sistema que está em mudança.


"A mera existência de utentes sem médico de família traduz uma falta de “igualdade dos cidadãos no acesso aos cuidados de saúde”, prevista como “objectivo fundamental” da Lei de Bases da Saúde. De facto, diferentes cidadãos têm diferentes facilidades no acesso aos cuidados de saúde primários e, consequentemente, aos cuidados de saúde hospitalares, meramente pela circunstância de constarem, ou não, das listas de utentes atribuídas a cada médico de família.
Se por um lado, a limitação do número de utentes atribuídos a cada médico de família pode, eventualmente, ter por objetivo a manutenção de uma qualidade mínima aceitável na relação dos utentes com o seu médico, por outro lado gera uma desigualdade acentuada entre cidadãos que deveriam ter os mesmos direitos no acesso aos cuidados de saúde. De facto, trata-se de garantir essa qualidade mínima a um conjunto de cidadãos (os inscritos em listas de utentes) à custa da exclusão de um outro conjunto de cidadãos, que ficam impossibilitados de usufruir do serviço público de atribuição de um médico de família, serviço que já pagaram através dos seus impostos, seja na parte que é por eles financiada seja na parte que for, eventualmente, financiada por dívida, e ao qual têm, naturalmente, direito." 

Faltou ao TdC definir o que é "ter médico de família". Ter médico de família não é estar inscrito numa lista, não é poder entrar num centro de saúde e pedir uma consulta. Ter médico de família é ter alguém que nos pode atender na hora mas que nos segue ao longo da vida, que se preocupa connosco de uma forma transversal ao nível da saúde, que adequa a vigilância ao caso particular, que nos conhece de certa forma. Podia continuar, mas esta pequena introdução basta para explicar que nem se põe a questão de piorar os cuidados para aumentar a cobertura, porque isso implicaria criar igualdade pela ausência de médico de família propriamente dito. Seria isso que aconteceria se os médicos fossem forçados a esquemas de consulta de 15 minutos, como o TdC - não sei com que noção técnica, mas baseado na média referida num estudo de actividade dos médicos - propõe logo abaixo. Esquece-se que há mais que um tipo de consulta, que os médicos adaptam o tempo da consulta à sua velocidade e à necessidade da situação e do utente, seja no horário base seja em cada momento, por vezes à custa do seu próprio tempo, por vezes aproveitando que uma consulta é mais rápida para poder utilizar 30 minutos noutra.


"Minimização dos constrangimentos existentes a nível de trabalho administrativo ou da utilização das ferramentas informáticas de registo da atividade clínica e de prescrição eletrónica de medicamentos."

Esta é obviamente necessária e tem tido recuos e avanços.


Reconsideração do papel dos diferentes técnicos de saúde na prestação de cuidados primários, permitindo a libertação de horas médico para a realização de consultas."

Esta proposta é, à parte de outros pormenores, a lembrança da hipótese que tem vindo a ser discutida de colocar enfermeiros a substituir os médicos em algumas actividades de vigilância. Há que ter muita atenção, porque se algumas destas situações são razoáveis e discutíveis, outras há que consistiriam em colocar um profissional menos preparado a substituir outro mais preparado num acto e isto é, diga-se o que se disser, mascarar um prejuízo para os cuidados de saúde. Lembrar aqui algo menos discutido que é o investimento em equipas de acção na comunidade, que poderiam vir a substituir grande parte das consultas ao domicílio, essas sim com gastos de tempo do profissional consideráveis e potencialmente evitáveis sem perda para o utente (e potencialmente com ganhos em rapidez e frequência de realização da consulta domiciliária, tal como com a preparação específica dos profissionais para estes casos).


"As tarefas extra consulta que ocupam mais tempo são a renovação de prescrições de medicamentos, o seguimento de estudantes e internos, as reuniões/gestão do serviço e a comunicação administrativa com outros profissionais, relativa aos utentes. Vários dos tempos identificados no referido estudo são passíveis de ser reduzidos. A título de exemplo, são gastos, em média, por dia, 8,6 minutos em comunicação administrativa, 7,3 minutos em contacto com delegados de informação médica, 5,7 minutos com problemas informáticos."

Há aqui alterações possíveis, mas lembro o TdC que é impossível reduzir 22min por dia nestes três últimos exemplos, como comentam abaixo, dado que não se pode eliminar a comunicação administrativa ou todos os problemas informáticos. Por outro lado, nem se admite que no mesmo ponto se coloquem gastos com a formação (que obviamente não podem ser reduzidos) ou com reuniões de serviço. Em relação à gestão do serviço, se se quer maior autonomia, como o próprio TdC admite, tem que se aceitar o aumento do tempo gasto pelos profissionais a exercê-la e procurar os seus resultados.


"Perspetiva-se que o desenvolvimento da reforma se restrinja à continuação da criação do número de USF e transformação de USF do modelo A para o modelo B, ao ritmo anual determinado por Despacho Conjunto do Ministro de Estado e das Finanças e do Ministro da Saúde."

Infelizmente, sim. Mas a haver novas perspectivas, novas medidas, novos programas, espero que sejam construídos apesar deste relatório e não a partir dele, tal é o erro de análise.