Tive o prazer de ver a exposição e estar presente no lançamento de Sobrevida no Mundo Fantasma e conhecer os seus autores. Carlos Pinheiro e Nuno Sousa ainda fizeram o favor de autografar, com direito a desenho personalizado e tudo, a cópia que decidi imediatamente comprar. Agora que li, fico ainda mais contente por ter aproveitado a oportunidade.
Sobrevida é um trabalho a dois com paralelismos a vários níveis entre as visões de cada autor, explorando a área semântica do conceito que lhe dá nome. Temos a primeira e a segunda parte, a noite e o dia, um grupo e um individuo, a acção e a introspecção, duas demonstrações do que pode ser sobreviver, continuar a viver depois da morte de outro ou da morte de parte de nós ou resistir e escapar a situações potencialmente fatais, mas também significar viver pouco, sem qualidade, no limiar, satisfazendo somente as necessidades básicas. Mesmo a palavra sobrevida pode ter aqui uma interpretação dupla, por um lado a ideia de ser um trabalho sobre a vida, por outro referir-se ao conceito médico de sobrevida que corresponde ao tempo de vida após diagnóstico de doença fatal. A capa funde estas duas visões na capa, em que o estilo do Nuno Sousa ilustra uma cena da história de Carlos Pinheiro e avisa o leitor de que, mesmo havendo as duas partes, é no todo que se interpreta esta obra.
A primeira parte da história é "a noite" de Carlos Pinheiro, onde seguimos um grupo de jovens que fingem morrer (ou morrem mesmo de tédio) e depois, libertados por essa transição, pela perda do que os prende à vida - ou será do que os prende na vida? - saem pela cidade onde, sozinhos e sem controlo externo, a exercem a sua liberdade através de atitudes desde a violência à sexualidade. Aqui temos um desenho a preto e branco, com poucas pistas descritivas da acção que decorre, em jeito de diário. A segunda parte é "o dia" de Nuno Sousa, no qual espreitamos a mente de um indivíduo mais velho cuja vida - estilo de vida? qualidade de vida? - foi destruída e avalia o seu quotidiano, quase em discurso directo para o leitor. Aqui o tédio e a desmotivação permeiam toda a história até ao apogeu final. A ilustração é agora a cores, com o texto, seja descrição, seja pensamento do personagem, seja até diálogo entre dois, sempre numa só caixa.
Sobrevida é uma banda-desenhada simples e intimista, que pede algum envolvimento emocional ao leitor e que acabou por me deixar a pensar que sobreviver não tem qualquer interesse, que mais vale viver com tudo o que a vida parece ter para oferecer ou então morrer mesmo, que o intermédio, a espera, a moratória, o limiar, o básico não passa de uma tortura.
Não consigo deixar de relacionar o que senti com esta leitura com o que acontece no mundo hoje em dia. A ideia de austeridade, de sacrificar tudo em nome de um qualquer futuro, de outra geração, de cumprir compromissos de outros não passa de um embuste cujo objectivo é criar um grupo de indivíduos sobreviventes conformados que na verdade nunca vão viver, vão apenas ser escravos entre o tédio e o suplício à espera da sua libertação, nem que seja pela morte.
Se ainda encontrarem cópias à venda folheiem e se, como eu, forem fãs da ilustração e da temática, comprem que não se vão arrepender e vale sempre a pena apoiar estes projectos e seus autores. Para espicaçar a curiosidade, deixo-vos com o texto que serve tanto de blurb como de final da história:
"Dizem que a Sobrevida é a existência - ou coisa parecida - de quem já não vive neste mundo, mas ainda não encontrou o seu rumo. Da vida real apenas conserva a semelhança. Alimenta-se das suas imagens (venera-as, são o seu amuleto), ronda-as em círculos a cada volta mais distantes do centro.
A Sobrevida, diz-se, é uma espécie de revivescência - sensação de vida.
Espíritos, espectros, almas penadas perseguem aquilo que já foram, podiam ter sido ou virão a ser (para sempre, nunca mais).
Diz-se que da Sobrevida apenas podemos conhecer aquilo que se conta. Diz-se muita coisa e tudo é insuficiente (ainda).
De qualquer forma, já cá não está quem falou."
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