Wednesday 5 December 2012

Beyond Good and Evil by Friedrich Nietzsche

Finalmente chega o momento de falar do livro que mais tempo demorei a ler em toda a minha vida, Beyond Good and Evil (BGE) ou, em português, Para Além do Bem e do Mal de Friedrich Nietzsche. Este autor praticamente dispensa apresentações, quase todo o mundo conhece o seu nome e o associa pelo menos a um certo sentimento contra a moralidade judaico-cristã ou à frase "Gott ist tot" - Deus está morto. Tendo eu sido criado por uma família de tradição católica moderada - mas com direito a baptismo, comunhões e crisma - cedo comecei a duvidar de muito do que me era impingido na dita catequese ou na missa e um dos primeiros nomes que me apareceu não sei se nas minhas pesquisas, na TV, ou em conversas, foi precisamente ele. Parece-me importante fazer a ressalva de que esta é uma opinião de um agnóstico educado previamente como católico porque as ideias de Nietzsche são polarizantes em relação a esse assunto. No entanto, não foi em busca de leitura sobre religião que escolhi pegar em BGE, mas porque li em algumas resenhas que era o livro em que estavam presentes quase todas as ideias do filósofo, em especial ao nível da ética, incluindo a sua desconstrução do moralismo. Outra ressalva é admitir a minha parca experiência em literatura filosófica o que limitou claramente o aproveitamento do texto.

BGE foi escrito como um prelúdio da filosofia do futuro dividido em prefácio, partes de 1 a 9 em que e o autor trata temas específicos e epodo. O corpo principal está ainda subdividido em 296 secções cujo tamanho varia de uma frase só ao estilo de aforismo a duas páginas de texto tentando delimitar a discussão de um aspecto específico. Apesar de ser um trabalho filosófico, não se lê como um texto técnico. Nietzsche era um homem culto, inteligente e aparentemente com sentido de humor e gosto pela ironia e isso transparece ao longo de toda a obra, escrita na transição entre a literatura e o discurso formal informativo. Torna-se um monólogo com perguntas retóricas e exclamações que, a ter direito a resposta "em directo", se tornaria numa das conversas mais relevantes da minha vida. Há no entanto que dizer que o estilo cíclico com que tenta transmitir a enorme quantidade de informação em BGE se torna por vezes cansativo ou confuso e exige um leitor pleno, atento e preparado para aproveitar ao máximo a leitura, algo que eu nem sempre pude ser.

A minha versão - colecção Penguin Classics - tem uma introdução de Michael Tanner (autor do livro Nietzsche: A Very Short Introduction) tanto sobre o BGE como sobre o próprio Nietzsche e a sua obra que, em 20 páginas e de forma muito eficaz, fornece contexto a quem como eu nunca tiver lido nada do autor, em especial ao nível de alguns conceitos que ele refere ou discute.
BGE propriamente dito começa pelo prefácio onde Nietzsche torna já bastante claro aquilo que vai defender. Se começa com um estranho "Supposing truth to be a woman", de forma a mostrar como os filósofos dogmáticos são tão maus a explorar a verdade como a tentar conquistar uma mulher, o autor rapidamente começa a explicar o quão limitante têm sido o dogmatismo e a moral judaico-cristã para os pensadores europeus, dizendo ter esperança de que corresponda apenas a uma fase de preparação cujo abandono permitirá o aparecimento de uma filosofia livre e verdadeira. Entretanto faz uma breve referência ao perspectivismo, antes de terminar com a ideia de que ele e outros espíritos livres e bons europeus ainda poderão ter sucesso nesta tarefa de criar ou pertencer à tal nova geração de filósofos.

"... we good Europeans and free, very free spirits - we have it still, the whole need of the spirit and the whole tension of its bow! And perhaps also the arrow, the task and, who knows? the target..."

Começa de seguida o corpo principal do trabalho, pela sua primeira parte denominada On the Prejudices of Philosophers (sobre os preconceitos dos filósofos), onde Nietzsche argumenta ser errado não só dividir o mundo entre verdadeiro e errado como também sequer acreditar na existência de verdades absolutas. Lembrando as consequências dos nossos preconceitos na percepção e no pensamento e negando anteriores noções de separação antitética entre o instinto e o raciocínio, o autor discorre sobre o tema tomando como exemplo vários filósofos anteriores a ele, como os estóicos, Platão, Kant, Descartes, Spinoza ou Schopenhauer. De referir ainda dois exemplos interessantes de situações em que se tem como verdades conclusões de processos enviesados à partida: o primeiro sendo a constituição de fenómenos como causa e efeito, ambos conceitos que são mais necessários à nossa compreensão da realidade do que parte da realidade em si mesma; o segundo o facto do nosso raciocínio poder ser dirigido pelas regras gramaticais da língua que nos permite estruturá-lo. Levando este ponto de vista mais além, Nietzsche ainda questiona a utilidade da verdade ou o valor real da busca pela verdade absoluta.
Segue-se The Free Spirit (o espírito livre) onde o autor prossegue na desconstrução do conceito de verdade e conhecimento, desta feita argumentando que tudo o que é de conhecimento geral foi necessariamente simplificado e portanto alterado a partir da realidade ou dos dados que dela se possam obter, por exemplo pela adequação à linguagem. Um dos exemplos de destacar é a questão do ritmo: diz Nietzsche que é uma das coisas mais difíceis de traduzir e que "It is dificult to be understood, especially when one thinks and lives gangasrotogati among men who think and live otherwise, namely kurmagati or at best as the frog goes, mandeikagati..." (quem pensa depressa - presto como o Ganges - dificilmente é entendido por quem pensa lento, como a tartaruga, ou como o sapo, staccato). De acordo com ele vivemos num mundo fabricado, numa espécie de realidade imaginada delimitada pelos nossos sentidos e a interpretação dos dados que nos chegam à nossa maneira. A ideia de espírito livre aqui refere-se aos novos filósofos que não se deixam limitar pelos preconceitos, pelos dogmas, pela moralidade, pela necessidade de aceitação geral. São estes que, segundo ele e com ele, vão criar uma nova filosofia - sem medo de experimentar, de mudar de ideias, de ser contradito por outros, de serem incompreendidos pela generalidade das pessoas - e assim fazer progredir a humanidade. Ainda nesta parte é introduzido o conceito de Will to Power (vontade de poder), aqui começando pela afirmação de que a única coisa que temos certeza é das vontades e de que são essas mesmas vontades, por vezes até inconscientes, que motivam todo o nosso comportamento. O filósofo considera que a motivação fundamental que dirige o ser humano é a vontade de poder, um conceito que, apesar de me parecer uma generalização exagerada e explicação insuficiente, permite compreender vários comportamentos individuais e sociais e gera uma discussão na qual vale a pena atentar.
Na terceira parte, denominada The Religious Essence (a essência da religião), Nietzsche explica como a o cristianismo, pela sua santificação de sensações ou atitudes à partida negativas, como a castidade, o isolamento, a humildade (no sentido da diminuição da auto-estima), origina uma sociedade em que as pessoas sacrificam as suas vontades, deixam de exercer a sua força, e se constituem numa massa amorfa que tem menos, sabe menos, sofre mais e acha que está a cumprir a sua função existencial. É esta slave morality que Nietzsche critica nos seus contemporâneos, que vivem na mediocridade conformada de aceitar os seus defeitos em vez de os querer combater ou ultrapassar e parecem não ter motivação para a realização pessoal.
De seguida, em Maxims and Interludes (máximas e interlúdios), o autor lista mais de uma centena de aforismos, versando os temas a que o livro alude, de certa forma simplificados, como que para mais fácil recordação e repetição. De notar aqui que aqueles em que se refere às mulheres são geralmente preconceitos absurdos e depreciativos. A título de exemplo, partilho três da minha preferência:
 - ""I have done that," says my memory. "I cannot have done that" - says my pride, and remains adamant. At last - memory yields."
 - "There are no moral phenomena at all, only a moral interpretation of phenomena..."
 - "The thought of suicide is a powerful solace: by means of it one gets through many a bad night."
A quinta parte - On the Natural History of Morals (sobre a história natural da moral) - é uma lição para criar "mentes abertas", em que o autor discorre sobre o desenvolvimento da moralidade essencialmente no sentido de mostrar que conhecendo não só a história da nossa moral como também contrapondo com as outras poderemos ultrapassar os limites que nos impõe. Prossegue com a argumentação de que a moral aceite globalmente (slave morality) produz a tal massa amorfa, uma sociedade-rebanho fraca e paralisada, que santifica todos os pobres e critica todos os fortes, ricos e poderosos. Nietzsche está contra esta generalização de critérios que deveriam ser essencialmente individualizados e nesse sentido chega até considerar a democracia somente mais uma forma de nos obrigar a sermos todos iguais. A will to power reaparece aqui na discussão do que afinal é bom ou mau. Um bom exemplo seria o conceito de altruísmo, que o autor considera ser uma forma velada de satisfazer a vontade de um indivíduo de se sentir bem consigo mesmo e vir a poder beneficiar de retorno do outro. Não estará o altruísta simplesmente a colocar-se na situação de superioridade - de poder - em que ele determina o que faz pelo outro e reserva a dívida para quando e como precisar?
De seguida, em We Scholars (nós académicos), o autor argumenta que a importância e progresso da ciência e a procura da objectividade estão a influenciar os filósofos do seu tempo, limitando a sua criatividade. Para Nietzsche, o cepticismo é ambivalente, na medida em que a dúvida pode levar o filósofo a rejeitar certas questões ou formas de alcançar novas respostas mas por outro lado pode também combater o dogmatismo, quebrar preconceitos e permitir novas perspectivas.
A sétima parte trata de Our Virtues (as nossas virtudes) e o autor volta ao perspectivismo e à critica que fez à moralidade e à generalização de critérios, desta feita aplicados ao que se consideram boas e más características ou atitudes de cada pessoa. É aqui que Nietzsche revela a sua divisão da humanidade em estratos, em que há indivíduos cujos espíritos são simplesmente elevados em relação a outros, algo que me parece - proposto como se fosse algo pré-definido ou imutável - completamente errado. Ainda neste capítulo, o filósofo admite que há em cada indivíduo um conjunto de crenças e opiniões que são básicas, quase inalteráveis, mas que nem por isso menos limitantes. Quanto às suas, ele dá o exemplo da sua visão das mulheres como superficiais, mesquinhas e intelectualmente inferiores aos homens. Ainda que admita a sua própria estupidez, isso não o desculpa por explanar todos os argumentos enviesados com que sustenta tal opinião e critica o feminismo. Revela-se aqui a minha maior crítica a Nietzsche, a sua tendência a ver as pessoas como puros estereótipos, sejam as mulheres, sejam os cristãos ou os judeus, sejam os alemães ou os ingleses.
Peoples and Fatherlands (povos e pátrias) é a parte designada à discussão desse estereótipo aplicado a todo o povo de cada país, mas também à critica do nacionalismo. Aliás, Nietzsche admite que algum sentimento nacionalista é comum e que ele próprio poderá senti-lo, mas que não deixa de ser uma visão limitada das coisas. É interessante ver como ele desenvolve, aqui por outra perspectiva, a sua ideia de uma Europa conjunta, mostrando-se por um lado fã da variedade como no caso da origem dos alemães - cuja vantagem é precisamente serem uma amalgama de vários povos, uma ideia que a dialéctica nazi inverteu - mas por outro sendo antagónico das ideias de democracia que lhe parecem ser mais indutoras de um rebanho de pessoas iguais do que facilitador do seu desenvolvimento como indivíduos. Pergunto-me se Nietzsche não confundiria a democracia com as ideias socialistas/comunistas, essas sim habitualmente mais merecedoras desse receio. Das suas ideias sobre os vários povos europeus, com as quais discordo na generalidade por serem simples preconceitos, ficou-me a sensação de que o filósofo não vê pessoas com a clareza e definição que vê as ideias e tende por isso a pensar cada povo como se fosse uma imitação barata de uma pintura impressionista de um qualquer campo de feno. Uma outra ideia a destacar aqui é a sua opinião sobre os judeus, dado tanto ser dito da associação dele com os ideais do regime nazi, havendo dois pontos em que facilmente se demonstra que são, neste caso, diametralmente opostos. Primeiro, Nietzsche é da opinião de que os judeus não querem conquistar a Europa, mas na verdade simplesmente integrar-se e poder "pertencer" a essa sociedade. Depois, o filósofo considera que os povos europeus só têm a ganhar com a inclusão dos judeus, povo que, apesar da sua moralidade anteriormente criticada, já muito havia trazido e criado na Europa, acusando os alemães anti-semitas de cobardia e inveja.
A última parte é denominada What is Noble? (o que é nobre?) e nela volta-se a aplicar o perspectivismo às motivações por detrás de certos actos de forma a desmistificar a ideia de boa pessoa. Por outro lado culmina aqui a explicação de Nietzsche da ideia de elite, algo que por melhor argumentado que tenha sido nunca me consegue convencer. Para ele a sociedade europeia, na sua variedade, serviria para gerar essa elite, uma aristocracia de espírito e mente superiores, que deveria liderar sem oposição os destinos de todos. Não nego que em cada momento da história há indivíduos com melhor capacidade para tomar certo tipo de decisões ou cujos ideais me parecem mais indicados como orientação para o povo europeu. O que recuso é a presunção que certos sábios podem ser deixados, na sua superioridade, a liderar toda uma sociedade sem que os restantes elementos tenham algo a dizer. Recuso ainda que devam ou possam ser solitários, isolados da massa amorfa que os rodeia, ou que se tornem superiores por alguma tendência ancestral. Parece-me melhor, mais próximo do ideal, que as direcções sejam constantemente discutidas, votadas, decididas por todos os indivíduos da sociedade, ainda que com o parecer ou as propostas daqueles que, em cada momento, estejam melhor preparados para as produzir. E nesse sentido, será sempre importante que esta preparação lhes seja reconhecida, não por eles próprios, mas pela restante população. Admito no entanto que uma grande parte da população, mesmo hoje em dia, não seja minimamente capaz de uma avaliação correcta dos problemas que enfrenta, quanto mais de tomar decisões ou votar de forma informada nas resoluções propostas.

Nietzsche escolheu terminar BGE com uma ode em quinze estrofes na qual complementa a mensagem do prefácio. Em tom de despedida, tanto dos velhos amigos como de si próprio, parece querer dar a entender que depois de tudo o que explorou no livro, das ideias que abandonou, das conclusões que tirou, é agora um ser humano diferente que vive como os outros não sabem viver, como um caçador solitário num deserto, recuperando aqui a metáfora da seta e fazendo até referência à procura por novas amizades e àquela que tem agora, com Zarathustra. Na edição que li o tradutor optou por fazer a passagem para o inglês sob forma de prosa poética com um parágrafo correspondente a cada estrofe, o que me pareceu uma boa escolha, dado que numa tradução para poesia, na tentativa de obedecer ao estilo e às regras, poderiam perder-se mais pormenores ao nível do sentido do texto e dos subterfúgios da linguagem.

Nietzsche foi um importante pensador do séc. XIX, com ideias revolucionárias na filosofia, ética, psicologia, sociologia, para além de se dedicar à poesia, composição musical e crítica de arte. No entanto não é só pelo interesse histórico do autor que recomendo a leitura deste livro mas porque muitas das ideias exploradas parecem ainda não ter tido o impacto necessário na sociedade. Uma grande parte de nós, talvez por insuficiência dos sistemas educativos, talvez por falta de interesse, ainda vivemos ancorados ao mesmo moralismo que Nietzsche identificou como prisão para o nosso progresso, ainda continuamos a discutir verdades ou factos ignorando as lições do perspectivismo, ainda sucumbimos ao nacionalismo, ao racismo e erros afins. Eu discordo do autor em muitos pontos, em especial na misoginia (que o próprio reconhece) e na defesa do conceito de elite superior (próximo por vezes da eugenia), mas não posso deixar de imagina-lo a viver hoje em dia, a escrever muito do que escreveu há mais de cem anos, a continuar a ter razão e a ficar desiludido com a falta de progresso dos costumes e ideias da humanidade como um todo.

De resto, e para quem ainda não leu Nietzsche, deixo duas recomendações. Em primeiro lugar, esqueçam os comentários que associam o filósofo aos nazis. Os seus trabalhos foram alterados de forma a serem utilizados na propaganda e as versões que Hitler leu e segundo se relata adorou foram aparentemente editadas pela irmã do autor de forma a aproxima-lo do anti-semitismo, eliminando muitas das suas opiniões. As versões publicadas hoje em dia diferem dessas e devemos aborda-las livres desse preconceito até porque, como demonstrei acima, as suas ideias são por vezes opostas às dos nazis. Por fim, lembrem-se que, como perspectivista que era, Nietzsche não escrevia para ser levado à letra, para dogmáticos, crentes na sua opinião. A enumeração de aforismos e as argumentações acutilantes servem mais o propósito de espicaçar a mente do leitor e de apontar uma linha de pensamento crítico e atento a todos os seus limites do que a formular verdades. Aliás, como eu disse acima, o próprio começa por questionar o valor da busca pela verdade. Nesse sentido torna-se interessante voltar atrás e ver como o próprio Nietzsche - obedecendo à sua ideia de que os filósofos gostam de esconder as suas verdades fundamentais - acaba por brincar com as próprias opiniões, contradizendo-se várias vezes ao longo de BGE sendo o exemplo perfeito o caso do preconceito que ele inicialmente critica, mas noutro momento usa claramente quando se refere às mulheres ou aos povos europeus. No fundo, ficamos sempre sem saber quanto do que estamos a ler é realmente correspondente ao que o autor acredita e quanto é simplesmente um meio para ele passar uma mensagem ou nos fazer repensar certas questões.

Lido que está Beyond Good and Evil e ainda quanto a Nietzsche, pondero agora se prefiro experimentar um livro de estilo mais literário, como o Thus Spoke Zarathustra ou prosseguir para outro trabalho de extrema importância, supostamente autobiográfico e em tom de retrospectiva da sua obra, o Ecce Homo. De resto, quero continuar a embrenhar-me na filosofia, sem pressas ou objectivos definidos excepto o de ir aprendendo cada vez mais. Só assim, a pensar, a pensar sobre pensar e a pensar sobre nós é que nós humanos podemos aproveitar o nosso potencial e sentir que a nossa existência valeu a pena, seja para a realização pessoal seja para a globalidade.

1 comment:

  1. The way of the kings... is to write never-ending reviews.

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