Wednesday 20 August 2014

Tapar o sol com a peneira - os médicos cubanos, os media e o governo

Desde que a questão dos médicos cubanos voltou "à baila", têm-se multiplicado as opiniões e análises desta suposta solução, mas raramente com a correcção e profundidade necessárias. Vou tentar separar os vários problemas para esclarecer a confusão:

 - o primeiro problema que se põe é a contratação de profissionais a Cuba sabendo que eles não recebem a devida remuneração porque o estado lhes fica com o dinheiro. Claro que fazemos isto noutras situações (como alguém dizia, compramos roupa que sabemos que é feita por crianças exploradas), mas isto é um contrato bilateral entre o estado português e o cubano. Se respeitássemos os nossos valores democráticos e humanos, nunca permitiríamos que assim fosse. A vinda de médicos cubanos deveria implicar o pagamento directamente aos próprios. O estado cubano beneficiaria com as remessas, como em qualquer outro caso de emigração, se quisesse. Esta é, claramente, uma questão importante mas separada da restante problemática;

 - os médicos cubanos não são especialistas. Ao contrário do que dizem os jornais e a ACSS, estes médicos não são de medicina geral e familiar (MGF), são médicos sem especialidade. Isto quer dizer que os utentes não têm médico de família coisa nenhuma, os utentes têm um médico que os atende mas que não tem a formação e as competências adquiridas ao longo dos quatro anos de especialização em MGF. Isto falsifica os números, mas, mais importante que isso, é uma falta de respeito para com os especialistas em MGF, engana os utentes e mantém uma situação de desigualdade. Há utentes com médico de família e utentes com médico não especialista a pensar que têm médico de família, para além dos que nem isso têm.

 - por vezes confunde-se isto com um insulto à sua competência técnica, mas não podíamos estar mais longe da verdade. Um médico de família não tem competência para exercer Cirurgia Geral nem Hematologia. Um clínico geral não tem competência para exercer MGF. Pode ser um óptimo clínico geral, mas não é um médico de família.

 - a questão dos gastos do estado tem sido sempre mal vista. O economista Pedro Pita Barros fez uma análise, onde tentou comparar o valor que o estado paga pelo médico cubano e pelo médico de família português mas que tem erros importantes:
  • a comparação só pode ser feita com médicos portugueses sem especialidade, dado haver uma diferenciação na remuneração dos especialistas de acordo com as suas competências, como a Ana explicou aqui e aqui;
  • o preço do médico cubano tem que incluir o que o estado gasta com a estadia e deslocação, como o próprio Pedro Pita Barros indica no seu post;
  • o preço do médico português fica diminuído se tivermos em conta que, do salário bruto que está a ser comparado, o médico paga IRS (que, portanto, reverte para o estado);
  • há um suposto suplemento remuneratório relacionado com os clínicos gerais que faziam atendimento em centros de saúde - Portaria nº 410/2005, de 11 de Abril - que desconheço se ainda se aplica, tal como desconheço se ainda há clínicos gerais portugueses a ocupar a função de médico de família em centros de saúde - agradeço que alguém me esclareça em relação a isto;
Posto isto, parece claro que o médico cubano sai mais caro que o médico português, se comparados os não especialistas, e mesmo se erradamente comparado com muitos dos especialistas em MGF.

 - a questão do vencimento que o médico recebe pelas funções realizadas é relevante num ponto. A presumir que o estado paga por função e adapta às necessidades de contratação, ou seja, que está a pagar a estes médicos para serem clínicos gerais e prestarem atendimento a certas populações onde não há médicos de família, têm que oferecer as mesmas condições remuneratórias aos portugueses. Não pode estar com isto o governo a tapar buracos para depois diminuir a imagem dos médicos portugueses, ao estilo do que se tem visto, dizendo que eles não queriam mobilizar-se para o interior mas os de Cuba vieram. Ora, antes disso, deve-se oferecer condições semelhantes a qualquer candidato equivalente àquela vaga, venha ele de Portugal, da Alemanha, da Argentina, da Malásia ou de Cuba.
Isto é especialmente relevante tendo em conta que o governo negociou com os médicos os novos contratos em que, desde 2012, um médico de família - especialista! - a iniciar carreira em Portugal recebe 2746,24 € brutos. Ora compare-se isto com o oferecido no contrato bilateral com Cuba.

1 comment:

  1. O professor Pedro Pita Barros respondeu no seu post à questão de ter ou não em conta o IRS que o Bastonário levantou na caixa de comentários lá e que eu próprio tinha referido aqui, pelo que só é justo que deixe aqui a ligação:
    http://momentoseconomicos.wordpress.com/2014/08/20/medicos-cubanos-graca-ou-desgraca/#comment-9425
    Não concordo que, por ser complexo, se possa deixar de parte esta questão. De resto, o comentário deixa transparecer, a meu ver, que no compto geral é muito melhor para nós a contratação de qualquer outro profissional, português ou emigrante em Portugal do que contratar um médico através deste acordo que fixa quase todo o ganho em Cuba. Mas, como o prof. diz e com razão, esta é uma questão que só é comparável desta maneira se se presumir que com as mesmas condições haveria médicos para esses locais sem ser os do acordo bilateral com Cuba.

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