Sunday 24 August 2014

Auditoria do Tribunal de Contas às unidades funcionais de cuidados de saúde primários (3)

Continuo a análise iniciada aqui e continuada aqui.



5.3 - Incentivos, compensações pelo desempenho e suplementos nas USF


"Os incentivos institucionais e financeiros atribuídos às USF e aos seus profissionais não acompanham o grau de eficiência económica verificado. Tendencialmente, são as USF com maior número de anos de atividade, que correspondem a USF do modelo B, que beneficiam de incentivos com maior expressão financeira."



Isto resulta de um misto de duas situações que vistas desta forma só se confundem. Por um lado, é importante ver que os objectivos são individualizados para cada ACeS e cada USF, o que quer dizer que comparar entre elas sem ter isso em conta não faz sentido. Por outro lado, faz plenamente sentido que as USF com mais anos de actividade tenham mais facilidade em atingir os seus objectivos - já têm os objectivos integrados na organização da actividade, conhecem a sua população e a sua população já começa a perceber a diferença entre a USF e o antigo centro de saúde - mesmo que esses objectivos sejam em alguns casos sempre crescentes.
Vale a pensa explicar aqui porque se justifica esta situação de individualização de metas, abordando mais especificamente as de desempenho económico, que são as que o TdC parece focar.
Ao contrário do que parece subjacente a esta análise, o país não é homogéneo. As várias regiões do país têm populações que diferem mais do que nas coordenadas geográficas. Uma dessas diferenças é nas suas expectativas em relação à saúde e ao sistema público de saúde. Outra é na sua relação com o seu médico e enfermeiro. O que quer isto dizer? Que não igualmente fácil habituar uma pessoa de Lisboa, da Maia, de Vila Real ou de Portimão à vigilância possível e desejada numa USF. Não é igualmente fácil que essas pessoas vão a uma consulta com regularidade. Não é igualmente fácil que mudem os seus hábitos, que façam os tratamentos novos conforme são propostos, que façam as análises quando é necessário. Claro que aqui podemos facilmente dizer que todas poderiam fazer o mesmo se obrigassem os utentes a mudar para o que é preciso, nem que fosse negando-se a prolongar receituário, por exemplo. Só que só diremos tal coisa se não formos médicos e formos pouco humanos. Porque a relação com as pessoas, a eficácia do modelo do médico de família (inerente às USF), tem por base a confiança, e essa confiança, essa relação médico-doente, não se estabelece se o médico mudar tudo o que fazia ou que o colega anterior fazia de um dia para o outro. Em especial quando, aos olhos do utente, tudo isso se deve a um roubo do governo, como tantas vezes ouço.
Por tudo isto - e tendo em conta que a duração das consultas é limitada - as transições que nos permitem as afamadas poupanças não são feitas de rasgo, de um dia para o outro, mas em negociação com o doente, quando ele compreende porque está a parar de fazer o medicamento X, a substituir Y por Z, a abandonar a sua vigilância semestral de um nódulo que, para ele, era muito importante, mesmo que o médico agora saiba que não necessita de tal cuidado.
Mas não me fico por aqui. As poupanças também dependem da actualização científica constante dos médicos, o que pode fazer variar as coisas mais um pouco.
Por fim, as poupanças também são alteradas pela quantidade de utentes que, estando inscritos, continuam a recorrer a cuidados hospitalares e ambulatórios, em especial os privados. Um exemplo típico é o que se passa actualmente, em que a crise empurra muita gente que antes recorria esporadicamente a privados para o SNS, sendo que o médico de família, tendo os mesmos utentes, vai ter necessariamente mais trabalho e mais gastos.

Há grandes problemas com os indicadores de eficiência das USF, mas a sua individualização a cada unidade é o pouco que estaria bem feito, se fosse mesmo levado a cabo. A realidade é que a negociação é frequentemente um fantochada e cada unidade vê-se forçada a cumprir o que o ACeS permite e o ACeS forçado a cumprir o que a ARS mandou e por aí fora. Adiante. Deixo para outra altura uma análise mais específica destes indicadores, mas os comentários acima já despontam o véu de todos os problemas que eles trazem.


"O sistema remuneratório dos profissionais das USF de modelo B é complexo e prejudica a perceção das remunerações realmente auferidas pelos vários profissionais, uma vez que conjuga várias componentes remuneratórias, nomeadamente: 
  • o ordenado base da carreira e da categoria; 
  • os suplementos relativos: 
    • ao regime de exclusividade
    • à quantidade e perfil de utentes inscritos, ao eventual alargamento do período de funcionamento ou da cobertura assistencial ou à realização de cuidados domiciliários, neste último caso atribuível apenas ao pessoal médico; 
    • às funções de orientador de formação e de coordenador da equipa, atribuíveis aos profissionais médicos. 
  • compensações pelo desempenho: 
    • pagas aos médicos em função da realização e registo de atividades específicas realizadas aos utentes; 
    • pagas aos enfermeiros e administrativos, a título de incentivos financeiros; 
    • associadas ao trabalho realizado referente a uma eventual carteira adicional de serviços." 
Verdade, o sistema é complexo. Também é complexo tentar perceber porque o TdC se preocupa mais com o facto dele prejudicar a percepção da remuneração do que com o facto de ele ser mais justo porque tenta adequar partes da remuneração às várias actividades que podem ser feitas independentemente umas das outras.



"Não resulta claro, se os funcionários públicos, enquanto profissionais das USF, são retribuídos fundamentalmente pelo seu desempenho, dependendo da avaliação dos resultados obtidos, ou se são retribuídos por suplementos remuneratórios que correspondem a aumentos salariais que visam remunerar o ónus que possa estar associado às atividades que desempenham no modelo de organização e funcionamento que foi criado para as USF."


Aqui concordo com o TdC. No que toca à definição legal, o sistema de remuneração das USF confunde-se por vezes entre suplementos e prémios de desempenho. Uma maior clarificação e simplicidade, nesta questão, seria óptima. Quanto aos médicos, em relação às actividades habituais, o sistema já é claro , pelo menos na prática (se não na definição legal), senão vejamos:
  • tem uma redução do salário base inerente ao modelo; 
  • esse vencimento mensal é suplementado por um cálculo de unidades de crédito, até um máximo de 20, que podem vir de duas fontes: 
    • o total de utentes inscritos na sua lista, acima de um determinado valor, e de acordo com a sua idade - o que corresponderia a um suplemento por maior ónus; 
    • as actividades específicas cumpridas no ano anterior, que correspondem a cumprir parâmetros de boa vigilância para alguns doentes e fazer o seu correcto registo - o que corresponderia a um prémio de desempenho. 
  • para limitar o tamanho da bonificação de vencimento que um médico pode atingir, sem diminuir o valor do cumprimento de cada parte, as duas concorrem para preencher o tecto de 20 UC. 
    • isto permite que um médico possa atingir o máximo de suplemento seja por se propor a vigiar muito mais pessoas seja por vigiar extremamente bem as que tem (sendo que não pode ter listas inferiores a X e deixa de ser beneficiado a partir de Y utentes, para que não haja deturpação da intenção). 
De resto, os suplementos por ser coordenador relacionam-se com o facto de este ter funções delegadas do director executivo do ACeS e portanto são de ónus, tal como os que se referem a carteiras adicionais de serviço que correspondem à criação de uma nova valência na USF, os relacionados com os domicílios correspondem a prémios de desempenho, dado serem calculados pelo número de domicílios realizados.



"O pessoal médico é remunerado duas vezes, pelo mesmo utente, através de duas diferentes componentes remuneratórias, situação que não ocorre quanto aos restantes profissionais. De facto, o aumento da lista mínima de utentes de cada médico, para além de permitir auferir suplementos, permite também auferir, por idêntica base de incidência, compensações pelo desempenho, decorrentes do registo das atividades específicas realizadas aos mesmos utentes.

Note-se que o trabalho acrescido resultante da vigilância adequada de determinados utentes da lista de cada médico é um ónus que já é compensado pelo suplemento relativo à dimensão e perfil de utentes inscritos, que atribui maior peso a determinadas faixas etárias."


A ignorância de quem fez o relatório está novamente à vista desarmada. Porque claro que, se o médico é remunerado por várias avaliações, vai acabar por ser duplamente remunerado em relação a alguns doentes, porque neles se centram vários cuidados importantes. Mas não é verdade que uma das remunerações já valesse pelas duas compensações. Passo a explicar:
  • A primeira remuneração tem a ver com trabalho regular de vigilância de qualquer utente, independentemente da doença. Valoriza mais alguns, pelo facto de habitualmente terem mais doenças ou queixas ou serem mais utilizadores; 
  • A segunda - a das actividades específicas - é um prémio por o médico ter ido além daquilo que o doente cumpre e necessita per se e ter-se esforçado para que o utente cumprisse certos critérios de vigilância, seja de visita regular no caso das crianças seja de visita regular, vigilância analítica e atingimento de alvos terapêuticos, no caso de diabéticos e hipertensos. 
São, como qualquer utilizador dos serviços reconhece facilmente, duas atitudes muito diferentes dos médicos de família, que implicam cuidados diferentes e esforços diferentes e que, como expliquei acima, têm um tecto a partir do qual não dão ao médico qualquer benefício remuneratório. Claro que, de resto - como demonstra bem o TdC - elas estão relacionadas: os utentes mais idosos correspondem a mais unidades ponderadas no cálculo da lista de utentes e mais provavelmente são diabéticos e hipertensos, pelo que possibilitam ao médico ter o benefício associado às actividades específicas. O mesmo acontece para as crianças. Mas atenção, o médico podia perfeitamente aceitar estes utentes na sua lista e vê-los em consulta - fosse de recurso fosse programada - mas não se esforçar por fazer o registo e as consultas nos tempos que os controladores desejam, tal como podia ter estes utentes na lista mas não conseguir que eles alcançassem os alvos terapêuticos. Portanto os benefícios são duplicados em relação ao utente porque representam duas partes diferentes do esforço de trabalho que ele implica.

Há aqui uma discussão interessante, que é a questão da relação da boa prática médica com o pagamento por performance, algo para que eu próprio não tenho respostas definitivas. Se presumirmos que o médico pode optar por fazer sempre o que comanda a boa prática, a noção de incentivo deixa de fazer sentido. Quase que se poderia fazer o contrário e descontar do vencimento de um médico nos indicadores em que ele não se adequasse ao que se considera a boa prática. A questão é que isso demonstra um enorme desconhecimento do que é a boa prática e a profissão. A medicina está em constante evolução e a sua prática de acordo com o que a evidência recomenda exige um esforço crescente do profissional para estar actualizado e para implementar as mudanças na sua prática, o que inclui mudar cuidados aos doentes. Ora, se é verdade que se o médico tivesse apenas um doente lhe poderíamos exigir boa prática médica constante e imediata, quando a realidade é o médico assistir centenas de doentes, por entre questões agudas e crónicas, com consultas de duração e frequência necessariamente limitadas, isso é utópico. O trabalho pago por performance é um incentivo ao esforço do profissional em conhecer e cumprir as normas e recomendações, em esforçar-se por demonstrar aos seus utentes a evidência que as suporta e que o levará a mudar comportamentos ou vigilâncias. Lembro aqui que em relação a muitos dos indicadores, o médico está dependente de conseguir convencer o utente, porque a pessoa ainda tem a liberdade de cumprir ou não o que o médico aconselha. Muitos dos indicadores implicam que o médico reveja listas de utentes para verificar o cumprimento de certos actos, como é o caso dos programas vacinais ou de rastreio, preparando a sua agenda e contactando os utentes para que os venham cumprir, muitas vezes com ganhos individuais mas também ganhos para a saúde pública. Quem não trabalha em USF frequentemente desconhece a natureza dos indicadores, mas em geral eles não verificam se o médico passou o exame ou o antibiótico ou analgésico certo para determinada doença. Verificam se o médico viu duas vezes por ano cada doente diabético, se chamou quase todas as suas utentes para fazer citologia cervicovaginal a cada três anos, se chamou as mulheres na idade certa para fazer mamografia, se as suas crianças cumprem o número e momento de consultas de vigilância conforme o recomendado, etc.. Isto é uma introdução à discussão, mas chega para o comentário a este relatório do TdC.


"Os médicos recebem ainda acréscimos remuneratórios pelas funções de orientador de formação do internato da especialidade de medicina geral e familiar e de coordenador da equipa da USF. No caso de o profissional estar no topo da carreira médica (assistente graduado sénior) a atribuição destes acréscimos suscita dúvidas dado que, por um lado, a formação e a coordenação poderão já estar compreendidas no seu conteúdo funcional e, por outro, por se encontrar no nível remuneratório máximo da sua carreira." 

Deixo a discussão sobre o suplemento relacionado com a formação para outro momento, tem muito que se lhe diga, desde o incentivo à formação, ao desejo de orientadores de qualidade, à diferença entre os médicos de família e os de outras especialidades, etc.. De resto, estas remunerações têm que ver com uma questão simples: se numa USF houver 3 médicos no topo da carreira, como se faz a distinção entre o que de facto exerce a função de coordenador e os outros? Pelo suplemento remuneratório.


"O regime de suplementos (associado a uma lista de utentes inscritos incluindo os não frequentadores), incentivos e compensações pelo desempenho, tal como se encontra definido, bem como a operacionalização de todo o processo instituído (sistema de controlo complexo e com vários intervenientes), merece reservas por ser de difícil perceção, carecer de suporte fiável e da correspondente demonstração de ganhos de eficiência que o justifiquem." 

Pelos vistos, a percepção não é assim tão difícil e os próprios gráficos do TdC ilustram os ganhos de eficiência do modelo de USF (veja-se o post anterior). Quanto a suporte fiável para verificação, já há alguns mecanismos mas sou a favor de melhor fiabilidade e facilidade de verificação.






"A análise do vencimento dos profissionais médicos, durante os anos de 2011 e 2012, revela que a remuneração dos médicos a exercer funções nas USF modelo B acresce em média cerca de € 2.750 (+80%) à remuneração dos médicos que exercem a sua atividade nas UCSP – € 2.587 (+72%) face aos médicos das USF A, colocando-os num patamar remuneratório completamente diferente.

A estrutura remuneratória aplicável aos profissionais que integram a equipa multiprofissional da USF modelo B, tal como está concebida, propicia um aumento expressivo da remuneração dos profissionais, que pode não estar justificado pelos eventuais ganhos de eficiência obtidos, uma vez que estes resultam de uma redução dos custos unitários com medicamentos e MCDT prescritos, cuja adequação não se encontra demonstrada."

Aqui tenho dois comentários a fazer.
O primeiro, notar que o TdC começa por fazer comparações tendo em conta o vencimento bruto potencial máximo (por sinal quase utópico dada a realidade da profissão), o que logicamente amplia a percepção de diferença entre os dois modelos, contribuindo para o que analisam de seguida - aí já tendo em conta a diferença de salários médios - a distinção da remuneração entre profissionais que em teoria estão contratados para um mesmo serviço. Concordo nesta questão com o TdC, a diferença entre o que se paga aos profissionais das USF B e os profissionais das UCSP é injusta. Claro que as comparações, sabendo nós que são dois modelos de trabalho e exigência diferentes, não devem ser feitas com esta leviandade. A verdadeira justiça aqui, após ter-se verificado que o modelo de USF funciona, oferece melhor satisfação dos profissionais e mais rápida progressão dos indicadores controlados para os valores desejados, com ganhos económicos e em saúde, seria voltar a discutir o modelo com os médicos que têm estado em USF e os que têm estado em UCSP e promover uma reforma de todos os cuidados primários. Só assim se eliminará a diferença, mantendo-se apenas a que há entre os modelos A e B das USF, na transição, dado que o objectivo é que todos terminem a trabalhar em modelo B. Já expliquei antes porque não faz sentido sequer fazer comparação dos vencimentos do modelo A e B, e basta para isso conhecer o enquadramento legal da criação de uma USF.
O segundo, fazer novamente referência ao problema de ter um TdC a fazer estas contas. Voltam a comparar os modelos USF e UCSP tendo em conta apenas os ganhos em eficiência, esquecendo-se que as USF, por demonstrarem melhor vigilância de certos grupos de doentes, também originam a longo prazo grandes ganhos em saúde que se reflectem, se assim o quiserem procurar, em grandes poupanças para o SNS.


"Note-se que estas assimetrias, afetando a equidade horizontal, podem eventualmente constituir um “desincentivo” e transformar-se em desmotivação por parte dos profissionais que não recebem nenhum acréscimo remuneratório, que no limite se pode repercutir nas condições de acesso, com o aumento de tempos de espera, no modo de atendimento e no limite, na qualidade dos cuidados prestados aos utentes."


Aqui concordo com o TdC. Já propus atrás qual seria a solução para este que é um problema de todas as reformas que começam por projectos piloto que se vão propagando de acordo com a vontade dos profissionais e do governo.


Termino com mais uma situação em que o TdC se esquece que os suplementos originados pelas UC relacionadas com as actividades específicas (que expliquei acima) só têm efeito à posteriori:

"Efetivamente, o modo de cálculo, de atribuição e de pagamento não traduz uma questão formal ou meramente processual, antes materializa as características dos prémios de desempenho. No caso dos profissionais de enfermagem e assistentes administrativos, os incentivos geram uma motivação extrínseca direta, uma vez que a retribuição só acontece após a realização e avaliação dos resultados ou melhor, o pagamento verifica-se a posteriori, no ano seguinte, a partir da validação da pontuação obtida com a realização, ao longo do ano anterior, dos indicadores contratualizados. Porém, caso se alterasse o modo de processamento e pagamento destas compensações aos médicos, introduzindo-se a característica da contingência, o sistema remuneratório dos profissionais das USF do modelo B tornar-se-ia internamente mais equitativo e justo."

As actividades específicas são calculadas em relação à actividade do ano e reflectem-se no suplemento ao ordenado mensal do ano seguinte. As unidades ponderadas referentes à lista de utentes são as únicas que podem alterar a remuneração mensal imediatamente (embora isso aconteça sempre com atraso), mas essas são as que o próprio TdC caracterizou como suplemento por ónus e não prémio de desempenho.
De resto, concordo que esta diferença no momento de pagamento não faz qualquer sentido. Ou o desempenho se reflecte no vencimento mensal de todos os profissionais no ano seguinte, ou se concentra e se oferece como prémio num momento único. Na prática, teria que ser a primeira opção, caso contrário as actividades específicas teriam que ser separadas das unidades ponderadas pelo tamanho da lista - lembro que neste momento elas competem para um tecto máximo pelo que têm que ser recalculadas em simultâneo constantemente.

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