Sunday 24 August 2014

Auditoria do Tribunal de Contas às unidades funcionais de cuidados de saúde primários (4)

Continuo a análise iniciada aqui e continuada aqui e aqui.


5.4 - Contractualização e Desempenho face aos Objectivos Contractualizados

"A contratualização de cuidados de saúde primários não tem sido suportada por uma metodologia transversal que inclua a priori um estudo regional das necessidades em saúde e dos níveis de oferta precisa de serviços públicos, nem da elaboração de orçamentos (anuais/plurianuais) específicos.

O estabelecimento dos objetivos resulta mais de uma determinação unilateral pelas ARS, do que da negociação entre partes, designadamente com os agrupamentos de centros de saúde (ACES), que por sua vez os transpõem para a contratualização com as unidades funcionais (USF e UCSP)."

Nem tudo são críticas. Aqui está uma questão em que não tenho o que apontar ao TdC. Confirmo que a contractualização em muitos casos não tem reflectido o que os seus proponentes tinham em mente. Não há estudo de assimetrias e necessidades locais para guiar a proposta da tutela. Não é dada às USF (nem sequer aos ACeS pelo que ouço) para negociar as metas de acordo com o que conhecem da sua realidade. No último processo de contractualização, a tutela ofereceu um intervalo de valores para a USF determinar a sua meta, no entanto em muitos casos o intervalo era todo ele deslocado do que os profissionais pensavam ser razoável. Isto originou uma contractualização em que a USF não pode senão tentar contractualizar constantemente o mínimo ou o máximo do intervalo que lhe foi oferecido, sem real adaptação ou negociação. Isto não ocorreu em todos, houve indicadores em que a negociação entre a USF e o ACeS foi real, mas é o facto de o modelo estar a ser viciado que interessa para esta análise.


"Os indicadores contratualizados caracterizam-se por serem indicadores de processo, relacionados com os procedimentos instituídos ao nível da prática clínica, e não de resultados em saúde, diretamente relacionados com a saúde dos utentes. Embora seja expectável que o cumprimento das metas impostas para os indicadores de processo possa contribuir para a obtenção de resultados, não foram apresentados estudos que sustentassem a adequação dos indicadores escolhidos, nomeadamente demonstrando o seu efeito percursor em termos de ganhos em saúde, ou justificando a sua escolha em detrimento de outros indicadores."

Esta análise já não é assim tão simples. Os indicadores de vigilância que se relacionam com o cumprimento do Plano Nacional de Vacinação, dos rastreios do cancro da mama, do colo do útero e do cólon e recto, da vigilância do pé diabético, tal como os indicadores que se relacionam com o controlo da hipertensão arterial e da diabetes mellitus estão, à luz da evidência científica, comprovadamente relacionados com ganhos em saúde. Muitos outros há, claro, que não estão demonstrados. Desde a redução de custos com exames auxiliares e medicação, à frequência de consultas na saúde infantil, saúde materna ou planeamento familiar, vários indicadores estão relacionados com uma presunção. Se o médico se esforça por cumpri-los, isso implica chamar os utentes a consulta quando já não a realizam há algum tempo e, claro, fazer a consulta devidamente o que se presume originar ganhos em saúde. Alguns destes têm mais que ver com vigilância e saúde pública do que com a saúde individual. Outros são mesmo contestados pelos médicos por não fazerem sentido - ou por vezes por não fazerem sentido com as metas que são forçadas. Há, sem dúvida, muito que pensar e modificar nos indicadores utilizados nas USF, mas também é verdade que este trabalho está a ser feito, como se pode verificar pela diferença entre os indicadores de 2013 e os de 2014.


"Afigura-se razoável que, no processo de contratualização com as UCSP e as USF modelo A, predominem os indicadores de processo, de forma a instituir rotinas de recolha e registo da informação operacional e clínica. Contudo, não se concebe que, na contratualização com USF do modelo B, não se evolua para uma contratualização baseada em indicadores de resultados, compatíveis com o sistema remuneratório instituído, de modo a conferir um incentivo ao trabalho orientado para os resultados, em vez do trabalho orientado para os processos."

Concordo. No entanto, há que ter muito cuidado, porque a generalidade destes indicadores de resultados em saúde só se reflectem após anos de prática. Não é uma USF com dois ou três anos de boa vigilância que consegue ter impacto ao nível das amputações dos pés diabéticos. É provável que esta transição só se faça para indicadores que se refiram a mais do que um ano de actividade, o que implicaria uma nova forma de contractualização e remuneração.


"O processo de contratualização é tardio (ou inexistente), prejudicando o ciclo anual de planeamento, execução e avaliação das atividades. Nem todas as ARS efetivaram em 2012 o processo de contratualização com os ACES nem, consequentemente, estes com as respetivas unidades funcionais."

Sim. E este ano voltou a ser. A contractualização devia ser feita mal estão prontos os resultados do ano anterior. Contractualizar as metas para um ano quando já passou 1/3 ou quase metade dele não faz qualquer sentido.


"No processo de acompanhamento e avaliação do desempenho, as ARS não estabeleceram ainda  rotinas de verificações e nem foi cumprida a periodicidade de reuniões entre a ARS, os ACES e as unidades, o que permitiria uma monitorização dos desvios ocorridos e a implementação de medidas corretivas."

Em defesa dos ACeS, tem havido um esforço crescente no sentido de fazer reuniões de acompanhamento. Desconheço o caso das ARS.


"Os indicadores de desempenho económico contratualizados não têm sido aplicados, de forma transversal e homogénea, nas diferentes unidades funcionais, de modo a serem comparáveis entre si." 

Isto tem uma razão de ser: os indicadores tinham em conta o histórico de cada unidade. Já expliquei antes porque os indicadores económicos não devem ser impostos de forma cega - a transição não deve impor-se ao funcionamento da relação médico-doente e depende de factores variáveis. Nunca podemos esquecer que não há um valor de gasto per capita que se reconheça ser o correcto. Há um encontro da necessidade de poupar com a evolução da evidência científica que torna obsoletos certos tratamentos ou vigilâncias com exames auxiliares mas simultaneamente demonstra a indicação de outros, mais novos e mais caros para as mesmas ou outras situações. Assim sendo, não podemos nunca por os médicos a trabalhar com um tecto fixo ou com uma redução forçada de gastos na sua lista. Basta colocarmo-nos no lugar do utente para ver como isto não iria resultar - para isso vou basear-me na minha experiência pessoal:
Imagine-se um utente habituado a tomar um medicamento que já não está indicado e a fazer um exame de 6 em 6 meses que agora já só se recomenda de 2 em 2 anos para vigiar o seu nódulo da tiróide. Ponha-se este utente, em 2013, plena crise económica, numa consulta com o seu novo médico, na USF onde se pode finalmente inscrever. Na primeira ou segunda consulta, o médico, depois de 10 min a falar com ele, praticamente sem o conhecer, informa-o que terá que parar aquele medicamento, que já não faz sentido tomar. Tem ainda tempo para se recusar a fazer o tal exame, porque basta repeti-lo daqui a dois anos. O utente aproveita para pedir para fazer exames de rotina, que o médico prontamente lhe diz que não vale a pena, porque isso até nem tem grande evidência que o sustente. Resultado? Poupou-se o dinheiro e perdeu-se o utente, porque em 20 minutos e em uma ou duas consultas, não há uma relação de confiança que contrabalance a dúvida. O utente sai convencido que o médico está a obedecer às ordens do governo, a poupar à custa da sua saúde. Vai fazer os possíveis para não voltar, vai gastar dinheiro a tentar fazer à sua conta os exames que puder ou indo de médico privado em médico privado, porque está convencido que o SNS não o vai ajudar. Ganhamos ou perdemos? Eu não tenho dúvida que perdemos.
Ter em conta estas situações é essencial para analisar a redução de gastos nos cuidados de saúde primários. Uma redução que é mais lenta, mas conseguida sem ser à custa da perda da confiança do utente permite ao médico fazê-la cada vez mais rápido, mantendo a relação com o utente e com isso originando outros ganhos em saúde.


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