Wednesday 6 August 2014

Auditoria do Tribunal de Contas às unidades funcionais de cuidados de saúde primários (1)

Na sequência da notícia na SIC e desta peça do Público, decidi-me a ler pelo menos o sumário executivo da auditoria do Tribunal de Contas (TdC) às unidades funcionais dos cuidados de saúde primários. Deixo aqui algumas citações do dito e comentários meus.

5.1 - A evolução dos centros de saúde e a reforma dos cuidados de saúde primários

"Continuam a subsistir nos centros de saúde tradicionais (UCSP), a nível nacional, situações de utentes inscritos sem médico de família que, em dezembro de 2012, atingiam 1.657.52639 utentes, apesar da diminuição de 10,21%, face ao ano anterior. 
Os resultados alcançados com a criação de USF, que se traduziram na atribuição de médico de família a 569.580 utentes, foram insuficientes para compensar a diminuição global do número de médicos de família, pelo que, desde a implementação das USF, após 2006, o número de utentes inscritos sem médico de família cresceu 24%. (com exceção do ano de 2012)"

Ao mesmo tempo que diz que a reforma não funcionou no sentido de dar médico de família a todos os utentes, o TdC esquece-se, por um lado, de interpretar os resultados de 2012 e por outro do facto deste governo ter limitado a progressão da reforma na criação e evolução das USF (algo que o próprio refere noutra parte do relatório).


"O modo instituído de atribuição de um médico de família pode condicionar a liberdade de escolha dos utentes e causar assimetrias de acesso, consoante os utentes estejam, ou não, integrados nas listas dos médicos de família e consoante estes profissionais desempenhem funções numa UCSP, numa USF do modelo A ou numa USF do modelo B."

Daí que o propósito da reforma seja levar a uma transformação progressiva de todo o esqueleto dos cuidados de saúde primários em USF com listas de utentes por médico e enfermeiro. Quanto ao resto, já se viu que entre os modelos A que pretendem evoluir e os modelos B os resultados assistenciais não diferem significativamente, pelo que deixa de haver tal assimetria. A que resta é inerente a um sistema que está em mudança.


"A mera existência de utentes sem médico de família traduz uma falta de “igualdade dos cidadãos no acesso aos cuidados de saúde”, prevista como “objectivo fundamental” da Lei de Bases da Saúde. De facto, diferentes cidadãos têm diferentes facilidades no acesso aos cuidados de saúde primários e, consequentemente, aos cuidados de saúde hospitalares, meramente pela circunstância de constarem, ou não, das listas de utentes atribuídas a cada médico de família.
Se por um lado, a limitação do número de utentes atribuídos a cada médico de família pode, eventualmente, ter por objetivo a manutenção de uma qualidade mínima aceitável na relação dos utentes com o seu médico, por outro lado gera uma desigualdade acentuada entre cidadãos que deveriam ter os mesmos direitos no acesso aos cuidados de saúde. De facto, trata-se de garantir essa qualidade mínima a um conjunto de cidadãos (os inscritos em listas de utentes) à custa da exclusão de um outro conjunto de cidadãos, que ficam impossibilitados de usufruir do serviço público de atribuição de um médico de família, serviço que já pagaram através dos seus impostos, seja na parte que é por eles financiada seja na parte que for, eventualmente, financiada por dívida, e ao qual têm, naturalmente, direito." 

Faltou ao TdC definir o que é "ter médico de família". Ter médico de família não é estar inscrito numa lista, não é poder entrar num centro de saúde e pedir uma consulta. Ter médico de família é ter alguém que nos pode atender na hora mas que nos segue ao longo da vida, que se preocupa connosco de uma forma transversal ao nível da saúde, que adequa a vigilância ao caso particular, que nos conhece de certa forma. Podia continuar, mas esta pequena introdução basta para explicar que nem se põe a questão de piorar os cuidados para aumentar a cobertura, porque isso implicaria criar igualdade pela ausência de médico de família propriamente dito. Seria isso que aconteceria se os médicos fossem forçados a esquemas de consulta de 15 minutos, como o TdC - não sei com que noção técnica, mas baseado na média referida num estudo de actividade dos médicos - propõe logo abaixo. Esquece-se que há mais que um tipo de consulta, que os médicos adaptam o tempo da consulta à sua velocidade e à necessidade da situação e do utente, seja no horário base seja em cada momento, por vezes à custa do seu próprio tempo, por vezes aproveitando que uma consulta é mais rápida para poder utilizar 30 minutos noutra.


"Minimização dos constrangimentos existentes a nível de trabalho administrativo ou da utilização das ferramentas informáticas de registo da atividade clínica e de prescrição eletrónica de medicamentos."

Esta é obviamente necessária e tem tido recuos e avanços.


Reconsideração do papel dos diferentes técnicos de saúde na prestação de cuidados primários, permitindo a libertação de horas médico para a realização de consultas."

Esta proposta é, à parte de outros pormenores, a lembrança da hipótese que tem vindo a ser discutida de colocar enfermeiros a substituir os médicos em algumas actividades de vigilância. Há que ter muita atenção, porque se algumas destas situações são razoáveis e discutíveis, outras há que consistiriam em colocar um profissional menos preparado a substituir outro mais preparado num acto e isto é, diga-se o que se disser, mascarar um prejuízo para os cuidados de saúde. Lembrar aqui algo menos discutido que é o investimento em equipas de acção na comunidade, que poderiam vir a substituir grande parte das consultas ao domicílio, essas sim com gastos de tempo do profissional consideráveis e potencialmente evitáveis sem perda para o utente (e potencialmente com ganhos em rapidez e frequência de realização da consulta domiciliária, tal como com a preparação específica dos profissionais para estes casos).


"As tarefas extra consulta que ocupam mais tempo são a renovação de prescrições de medicamentos, o seguimento de estudantes e internos, as reuniões/gestão do serviço e a comunicação administrativa com outros profissionais, relativa aos utentes. Vários dos tempos identificados no referido estudo são passíveis de ser reduzidos. A título de exemplo, são gastos, em média, por dia, 8,6 minutos em comunicação administrativa, 7,3 minutos em contacto com delegados de informação médica, 5,7 minutos com problemas informáticos."

Há aqui alterações possíveis, mas lembro o TdC que é impossível reduzir 22min por dia nestes três últimos exemplos, como comentam abaixo, dado que não se pode eliminar a comunicação administrativa ou todos os problemas informáticos. Por outro lado, nem se admite que no mesmo ponto se coloquem gastos com a formação (que obviamente não podem ser reduzidos) ou com reuniões de serviço. Em relação à gestão do serviço, se se quer maior autonomia, como o próprio TdC admite, tem que se aceitar o aumento do tempo gasto pelos profissionais a exercê-la e procurar os seus resultados.


"Perspetiva-se que o desenvolvimento da reforma se restrinja à continuação da criação do número de USF e transformação de USF do modelo A para o modelo B, ao ritmo anual determinado por Despacho Conjunto do Ministro de Estado e das Finanças e do Ministro da Saúde."

Infelizmente, sim. Mas a haver novas perspectivas, novas medidas, novos programas, espero que sejam construídos apesar deste relatório e não a partir dele, tal é o erro de análise.

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