É claro que esta preocupação é compreensível, aliás, é até típica do momento em que vivemos. É mais sobre essa questão que me quero debruçar.
A literatura e a animação ditas steampunk (algo a que ando um pouco mais dedicado no último ano) exploram frequentemente esta questão da substituição do homem pela máquina e as consequências disto para a sociedade. Foi aliás com isto em mente e pela analogia com o momento que vivemos hoje que escrevi o texto com que participei no Almanaque Steampunk 2012. Aquela visão crítica que levou os trabalhadores contemporâneos da revolução industrial a revoltarem-se contra as máquinas e os motores a vapor é contraposta frequentemente nas obras steampunk com os benefícios que o progresso tecnológico pode trazer. As conclusões, se o livro for bom, são deixadas à discrição do leitor. Aquilo que permite esta contraposição, que nos impede de dar imediatamente razão aos trabalhadores, é a esperança, e é agarrado a ela que vem o tom positivo ou optimista que se encontra muitas vezes nestas obras. A esperança de que o progresso nos fará bem a todos, a esperança de que a sociedade vai apoiar os trabalhadores que vão sendo substituídos na sua transição para outras funções e a esperança de que isto permite que as pessoas se ocupem somente com funções em que seja mesmo essencial um ser humano ou com funções que gostem genuinamente de realizar. O progresso tecnológico deveria permitir aos seres humanos vidas cada vez mais descansadas, uma menor dependência do trabalho (principalmente o físico) ou pelo menos uma necessidade de trabalhar restrita a poucas horas ou dias, e a rentabilidade do uso de máquinas deveria resolver o problema da produtividade permitindo eliminar a diferença de qualidade de vida entre os que ganham muito e os que ganham pouco, os que têm ou deixam de ter emprego.
Infelizmente, nem que tecnologicamente tudo isto fosse possível, a nossa sociedade não está pensada dessa forma. As pessoas acreditam no valor do trabalho quase como uma definição do valor da pessoa. Se imaginássemos um mundo em que as pessoas não teriam que trabalhar praticamente nada porque as máquinas o fariam por nós, muitos nos diriam que isso seria horrível e que decerto a humanidade se perderia no ócio e se destruiria. Se isto é verdade ou não, pelos vistos não estamos perto de o descobrir.
A verdade é que as pessoas que lideram a nossa sociedade, nas sombras ou não, não querem que o progresso se faça às claras e nessa direcção. Porque isso implicaria uma divisão de recursos relativamente igualitária, implicaria que deixaríamos de ter desculpa para manter tanta gente na miséria ao mesmo tempo que sustentamos tantos milionários. Se um dia o valor de uma pessoa e o seu acesso aos produtos não for determinado pelo seu trabalho, e esse trabalho não for controlado por estes mesmos "jogadores", como é que eles se poderiam manter a viver no topo do mundo, com mais do que quaisquer outros, com tudo o que possam imaginar? Só seria possível se o progresso de facto nos levasse a uma certa utopia em que a produção fosse tão elevada e rápida que não haveria limites ao consumo para nenhuma pessoa.
Para já, o facto é que ainda não estamos perto disso, aparentemente o ser humano ainda precisa de trabalhar muito para se sustentar (ou é isso que nos querem fazer acreditar - teoria da conspiração?). Para além disso, à conta de quem nos dirige e define as nossas prioridades (não digo só a nível nacional, mas também e principalmente internacional), não temos de todo um bom sistema de suporte àqueles que, sendo substituídos nas suas funções por máquinas, perdem o emprego que justificava o seu acesso a bens e serviços. É que, no momento em que vivemos, nem há expectativa da pessoa ter outro emprego em tempo útil, nem da sociedade usar excedente para sustentar esta pessoa enquanto espera e muito menos da pessoa poder viver sem emprego e dedicar o seu tempo ao que lhe der na cabeça, por exemplo em actividades que contribuam ainda mais para o nosso progresso (demasiada utopia?).
Enquanto não nos livrarmos desta liderança, desta ditadura social e económica, desta ilusão em que nos obrigam a viver, será sempre legítimo fazer o raciocínio que Mário Teixeira partilhou no Aventar. Porque, ao contrário do que nos tentam constantemente fazer crer, mais importante do que o futuro, o progresso tecnológico, a produtividade numa tarefa específica, mais importante que tudo isso nas nossas decisões a cada momento é a pessoa, aquela mesma pessoa cujo destino estamos a decidir constantemente, sempre que optamos pela máquina e a deixamos entregue a um sistema que, como acabo de descrever, não fará nada do que promete, não a protegerá e, aliás, usará o seu desespero e o de tantos outros para lhe oferecer um trabalho ainda menos remunerado. Enquanto não nos salvarmos disto, não saberemos de facto em que ponto estamos a nível de produtividade, de rentabilidade, de possibilidades quanto à justa divisão de esforços e produtos. Infelizmente, e olhando especificamente para Portugal, não vejo maneira de isto acontecer. Todas as forças políticas de representação parlamentar e praticamente todas as opiniões mediáticas concordam pelo menos nesta ideia de valorizar os "trabalhadores" ou o "trabalho" em vez de valorizar a pessoa. A direita faz-nos crer que as pessoas têm que se esforçar para ser as melhores no seu trabalho e que assim terão uma boa vida, a esquerda agarra-se ao discurso dos direitos dos trabalhadores. Poucos conseguem pensar, ou pelo menos fazer chegar ao público, uma visão que tenha em conta este ponto, que olhe para as pessoas independentemente do trabalho, do emprego, do contributo verificável. Poucos se questionam abertamente sobre a falta de progresso social apesar do tecnológico. Agarram-se à qualidade de vida medida por bens de consumo e esquecem-se que o que queríamos do progresso tecnológico era que nos permitisse fugir da organização feudal da sociedade, em que os ricos têm tudo porque são ricos, os que trabalham têm algo porque trabalham e os que não trabalham não interessam nada. Será que ainda faz sentido, nos dias de hoje, ver as coisas assim? Será que ainda não atingimos um ponto em que é ridículo esperar que toda a gente trabalhe tanto como as leis obrigam? Não sabemos. E é assim, feito anfíbio na panela com água a aquecer, que vamos nadando de um lado para o outro enquanto nos cozem em lume brando.
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