Este é o terceiro post a comentar os Contos Digitais do DN, disponíveis gratuitamente na sua biblioteca digital.
Um conto absolutamente contemporâneo, Coisas Que Acarinho E Me Morrem Entre Os Dedos é aparentemente escrito para o leitor dos dias de hoje, que, sob o manto de referências à internet na nossa vida e à televisão, mesmo as notícias, como distracção dos nossos problemas, trabalha principalmente a nossa expectativa e a forma como reagimos a ela e ao medo da sua violação. Isto visto em relação ao Bangladesh - "When's Bangladesh going to disappear?" - à pesquisa na internet e criação de uma ideia de algo antes de o conhecer - "(...) Podia ser só uma questão de estilo. Mas quis acreditar que não e li como se fosse verdade" - à vontade de criar uma boa primeira impressão e à falta de vontade de arriscar um encontro em condições menos que perfeitas (todas?) - à insegurança em relação a mudanças, à procura de soluções fáceis ainda que superficiais e disfarçadas, à vontade de desistir. É, no fundo, um conto sobre uma pessoa e o que lhe passa pela cabeça no decorrer do seu dia a dia, num equilíbrio entre a vontade de conhecer e o medo do desconhecido, da desilusão e da possibilidade de perda. A contraposição entre os dois psicólogos é também inteligente neste contexto - um referindo-se mais ao abismo vertiginoso do auto-(des)conhecimento e o outro à dor do contraste com os outros, que, superficialmente, como quem vê de fora, nos parecem melhores e nos magoam talvez por tornarem tão claros os defeitos que vemos em nós - e é fechada com chave de ouro com a decisão de controlar os ataques de pânico com químicos que, embora não lhe resolvam a origem do problema, pelo menos não a desiludem com outra tentativa de explicação metafórica das suas emoções.
Identifiquei-me muito com a personagem e claramente gostei muito da leitura, mas continuo com a sensação que esta história tem mais para dar, com uma leitura mais atenta que a minha. Nunca li nada de Dulce Maria Cardoso. Talvez seja altura de começar.
Conheço Pedro Mexia da sua participação no Governo Sombra e de alguns textos da revista Ler, mas Defensor do Vínculo foi o meu primeiro contacto com a sua ficção. Infelizmente, não fiquei bem impressionado. Este conto, sobre o defensor do vínculo que, num processo de pedido de anulação do casamento, tem a função de defender o casamento como instituição, explora a comparação entre o fracasso e a nulidade, no paralelo entre a verdade e a validade, ao mesmo tempo que a personagem tem uma crise de crença na sua própria função. Apesar de haver alguns pormenores engraçados e da visão ridicularizada do casamento como algo que se supõe superior à relação que representa, a prosa não é fluída, com frases longas, expressões e termos incomuns que contribuíram para alguma confusão na primeira leitura. Numa segunda tentativa o conto é melhor, ou pelo menos mais claro, mas ainda assim a prosa não me convenceu nem me deu especial prazer na leitura.
Apesar de tudo gostei da ideia que é explorada e continuo com curiosidade em ler um trabalho de Pedro Mexia noutro formato.
Nunca li nada de Fernando Alvim, embora o conheça dos meios audiovisuais. Amo-te Para Sempre parece ser uma tentativa de explorar a expectativa de um casal, um em relação ao outro, a vontade de mudar pelo outro ou a vontade de ver o outro mudado para corresponder a uma versão idealizada. Acaba recordando o leitor que, para além do problema inerente a levar estas vontades ao extremo, as vontades em si, as ideias, as opiniões, os sentimentos, tudo é efémero e é preciso ter cuidado com decisões e atitudes definitivas, sem retorno, com base neles. Não é uma simples crítica, e até há a personagem à qual o autor permite a mudança, a evolução, talvez por ter percebido que ama a pessoa e afinal não quer que ela seja vazia ao ponto de mudar completamente por vontade de outra. Não é uma ideia nova mas podia ter sido interessante, não fosse a escrita absolutamente contra-produtiva. O narrador não passa de um apresentador de um late night show, a contar a história aos bocados, interrompendo-a com os seus comentários com intenção de ter piada e parecer irreverente e talvez até gozar um pouco com quem quer parecer irreverente. Isto exagerado ao ponto de quase abafar a história e lhe remover a réstia de interesse que poderia ter.
O conto de Possidónio Cachapa - O Homem Que Existia Demais - não me disse mais do que o que se lê no título. O narrador conta alguns episódios da história de Savage Danny, um homem auto-confiante, com uma vida fora do comum e uma atitude na linha do carpe diem. Infelizmente o conto parece, ainda que bem escrito, absolutamente desnecessário. Eu até estou interessado numa história sobre um Savage Danny, mas não uma que serve somente para tentar dar contexto ao título e fica a saber a introdução. Apesar deste não me ter convencido, não está fora de questão ler outro trabalho do autor, talvez num formato diferente.
David Machado traz um conto com um tom mais infantil que os anteriores na colecção, mas nem por isso menos interessante. A história trata de uma rapariga que acha sempre que pode ajudar, seja o problema qual for, e rapidamente recorre à solução que imaginou sem especial ponderação. Acho que posso ajudar é uma breve e superficial referência à falta de análise das situações, à acção imprudente ou negligente e que nos lembra que por vezes mais vale dar um passo atrás que insistir num caminho com constantes danos colaterais. Pondero ler mais trabalhos de David Machado. Deixo uma nota final para as ilustrações de Mafalda Milhões, adequadas à história e ao tom em que é contada, dando-lhe um toque colorido que é muito bem-vindo.
Outros posts nesta série:
Fiquei particularmente curiosa pelo conto da Dulce Maria Cardoso. O do David Machado também parece interessante, por ser dirigido a um público diferente em relação aos outros contos. Já agora, li o post do autor a dizer que lhe pediram para escrever um conto infantil para esta coleção... será que pediram a outros autores contos dentro de determinada temática/público-alvo?
ReplyDeleteTambém me passou isso pela ideia, até pondero se não será essa a justificação a falta de interesse de alguns contos.
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