Este é o quarto post a comentar os Contos Digitais do DN, disponíveis gratuitamente na sua biblioteca digital.
A Balada da Vala dos Velhos é um conto em forma de carta de um senhor de 78 anos que está prestes a morrer por eutanásia dirigida a um director de um jornal contando o último episódio relevante da sua vida. J.P. Simões aproveita o mote para comentar várias situações da actualidade, fazendo crítica social e política, nomeadamente quanto à forma como as pessoas abandonam os seus velhos, ou a forma como são tratados em muitos lares, à antiga medicina paternalista, aos sucessivos governantes que nunca querem realmente mudar um sistema de si injusto, à classe média seduzida pelos empréstimos fáceis, e por aí fora. Tudo isto enquanto nos conta o que um amigo seu decidiu criar, no final da sua vida, no fundo em resposta a parte destes problemas e por outro lado lembrando que a idade não implica inactividade, nem física, mas muito menos mental.
É uma carta bem escrita, num tom credível de um homem algo farto do mundo em que viveu, de todas as coisas que vê mal resolvidas ou agravadas depois de tantos anos. Não é tanto um "Velho do Restelo" ou um pessimista, como alguém que percebe que a solução existe mas que não é pensada ou aplicada, seja intencionalmente seja por puro desinteresse. Há no entanto momentos em que a crítica é tão literal que parece que o autor está a mandar recados directos ao leitor, algo que nem sempre me pareceu estar bem integrado na carta prejudicando, por isso, o ritmo e sensação da leitura.
Rui Cardoso Martins traz-nos, em O Progresso da Humanidade, uma investigação policial da morte violenta de um indivíduo, em condições pouco claras, através do bloco de notas / diário do falecido. Aparentemente era um homem estranho, misterioso, com afiliações com ideais fascistas e que parecia ficar facilmente obcecado com algumas ideias ou situações. A exploração do mistério é engraçada, a intercalação entre a leitura do diário e as conclusões do investigador está bem conseguida, e o final irónico finaliza bem o conto. No entanto não consegui deixar de sentir, constantemente, que estava a ler um esboço de uma história, na qual se explorariam muito mais cada um dos episódios da vida do Oliveira e até o que lhe teria passado pela cabeça, aludindo mais ainda à ideia de progresso da humanidade no geral, e não só naquela que é mais directamente consequente do último episódio da vida do indivíduo. Nunca tinha lido ficção de Rui Cardoso Martins e, embora este conto não me tenha convencido completamente, pondero ler algo mais do autor, noutro formato.
Para quem ouve os programas de rádio do Nuno Markl há algum tempo, um conto cómico não é de todo inesperado. A Terrível Criatura Sanguinária é uma história sobre um autor que é encorajado pelo editor a escrever sobre vampiros ou lobisomens e incluir muita sensualidade, porque é isso que está a vender de momento. O autor notoriamente não tem qualquer interesse nisso, mas por outro lado vê-se entre a espada e a parede e pondera começar por escrever o que o lhe é pedido até estar numa posição em que possa publicar o que quer. De seguida vemos o processo de criação de uma história em que o autor tenta fazer a vontade ao editor sem conseguir fugir às suas ideias, sendo o resultado algo estranho, surpreendente talvez tanto para o autor como para o editor.
Não é um conto para causar gargalhadas a toda o momento, mas não deixa de ser engraçado, fazendo uma crítica não tanto ao que as pessoas gostam mas ao vazio do conceito ou à parte a que nos agarramos naquilo que gostamos, tornando óbvia a sinédoque a que recorremos quando queremos explicar ou justificar porque gostamos de uma coisa ou outra. O importante não era ter sexo e uma criatura que da noite que bebe sangue? Não chega isto para corresponder à metáfora que anda aí desde o Dracula?
A Mina do Deus Morto deixou-me de certa forma com opiniões contraditórias. Por um lado, o começo é estranho, com uma escrita pesada, um texto que dá a sensação de ter sido demasiado planeado, palavra a palavra, tudo adjectivado e comparado à exaustão, com recurso a um linguajar atípico que nos faz quase contar palavras em vez de ler e se torna um entrave à entrada na história. Admito que se reconhece no narrador a voz do João Barreiros e lembrei-me que este conto resultaria bem em formato de audiobook, lido pelo autor. Por outro lado, e ultrapassada esta confusão, A Mina do Deus Morto traz umas ideias interessantes, abordadas superficialmente, desde partículas criadoras de vida e energia quase gratuita como um novo olhar sobre a nossa dependência de certos recursos limitados, à inteligência mecânica e exploração humana em nome da pátria (ou do que seja). Mas o melhor do conto é sem dúvida a descrição da descida dos mineiros às profundezas e o efeito das partículas do deus morto neles. É principalmente este conceito, uma novidade refrescante nestas conversas já gastas, que me deixa com vontade de ler mais do autor, coisa que de qualquer forma já vou fazer dado ter comprado o Lisboa no Ano 2000 – Uma Antologia Assombrosa Sobre uma Cidade que Nunca Existiu, livro que partilha o mesmo universo ficcional deste conto.
Ninfas e Adamastores de Raquel Ochoa é um conto sobre um emigrante do Magrebe em S. Miguel e a sua família. Não estando mal escrito, também não foi história que me despertasse especial interesse, as personagens não são desenvolvidas ao ponto de nos ligarmos a elas e o enredo é o de "mais uma" novela televisiva. Aliás, só à terceira tentativa consegui ler o conto até ao fim. Há ali a possibilidade de explorar ideias, desde a da situação do imigrante, da interação entre o judeu e os católicos daquelas paragens, a luta contra preconceitos até do sacrifício pela família, mas ou a estrutura e tamanho não o permitiram ou a autora não as escreveu na história como que quereria.
Outros posts nesta série:
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parte 2
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