Sunday 16 February 2014

Do ataque à carreira médica e ao SNS

O novo projecto de decreto-lei relativo ao internato de formação específica na profissão médica começa por dizer, no seu artigo 2º, que 

"O internato médico corresponde a um processo único de formação médica especializada, teórica e prática, que tem como objetivo habilitar o médico ao exercício tecnicamente diferenciado na respetiva área de especialização."

Depois trata de preparar um regime que vai obrigar à criação de uma franja de médicos não especializados, sem possibilidade real de fazerem a dita especialização, mas com a devida autonomia de forma a encaixar-se no mundo do trabalho, diminuindo a qualidade e a exigência em relação à profissão médica. Quem pense que isto tem outra pretensão que não enfraquecer a classe médica, piorar a visão geral do seu trabalho, diminuir mais os seus rendimentos, facilitar a médio prazo o ataque ao SNS e a criação de um sistema privado com médicos baratos e sem opções, está puramente iludido.

No artigo 6º, sobre os locais de formação, diz-se

"2 - Os critérios para a determinação de idoneidade dos estabelecimentos e serviços, referidos no número anterior, são definidos sob proposta do CCIM, ouvida a Ordem dos Médicos, por despacho do membro do Governo responsável pela área da saúde.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior e na ausência de parecer da Ordem dos Médicos, a definição dos critérios de idoneidade é efetuada com base na proposta do CCIM, por despacho do membro do Governo responsável pela área da saúde."

Ora isto parece-me a abertura do caminho para ser o governo a poder definir, por si só, a idoneidade formativa de alguns locais. Será isto para oferecer aos privados a garantia de que poderão ter internos? Fica a dúvida.

No artigo 11º, ponto 1

"b) Prestação de prova nacional de seleção;"

Lembro-me de haver uma prova nacional de seriação, resultando numa ordem de preferência, mas não numa selecção de quem pode ou não escolher internato de formação específica.

No artigo 12º,

"2 - O médico que, tendo ingressado no internato médico, opte por se desvincular antes de concluído o respetivo programa de formação especializada, não pode candidatar-se a novo procedimento concursal de ingresso antes de decorrido um período de 2 anos civis, salvo o disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 25.º."

Pergunto, o que farão estes médicos não especializados durante dois anos para seu sustento?

O Artigo 13º retorna à prova:

"1. O modelo da Prova Nacional de Seleção (PNS) é aprovado por despacho do membro do Governo responsável pela área da saúde."

Não era a Ordem dos Médicos (OM) que definia a exigência para a pratica da medicina? E se esta prova não é para isso, então porque raio no Artigo 14º se diz que

"Os candidatos que obtenham na PNS classificação superior a 50% da classificação máxima realizam as suas escolhas de colocação, de acordo com o mapa de vagas divulgado pela ACSS, I.P.."

Teremos nós, potencialmente, médicos que a OM considere capazes mas a quem o governo não ofereça possibilidade de formação? Ou a OM já nem vai ter nada a dizer?

No artigo 21º aparece uma nova dúvida:

"3 - Os médicos internos realizam a formação em regime de exclusividade de funções."

Significa isto que os médicos internos deixam de poder trabalhar noutras instituições, seja isso por interesse curricular, para incrementar rendimento ou para ambos?

A primeira resposta aparece no Artigo 37º:

"6. O regime previsto presente diploma aplicar-se-á na sua totalidade, pela primeira vez, aos médicos que irão realizar a Prova Nacional de Seleção em 2015 e cujo ingresso no internato médico terá lugar em 1 de Janeiro de 2016.Aos médicos abrangidos pelos nos. 2,3 e 4 do presente artigo, o exercício autónomo da Medicina, é reconhecido a partir da conclusão, com aproveitamento, do Ano Comum de formação do internato médico."

Ou seja, os médicos passam a ter autonomia a partir da conclusão do ano comum e, portanto, sem necessidade de qualquer formação especializada. Agora falta ainda saber o que vai acontecer ao certo ao ano comum. Irá ele desaparecer e ser absorvido pela especialidade, como parece dar a entender o Artigo 3º?

"4 - O internato médico é desenvolvido em conformidade com os respetivos programas de formação médica especializada. O programa de formação do 1º ano de especialização deve para o efeito contemplar os itens necessários por forma a assegurar, em pelo menos 80% do programa, uma formação comum a todas as especialidades., agrupadas em dois troncos comuns. Os troncos comuns são cirurgia geral e medicina interna."

E se sim, os próximos médicos serão autónomos à saída do curso? E, portanto, os tais médicos não aprovados na prova de selecção serão trabalho não especializado e mais barato para ser aproveitado? E se sim, será a ideia por médicos a trabalhar em estágios desestruturados e mal pagos (como é costume em Portugal) entre o final do curso e a dita prova de selecção, para depois terem vantagem no desempate, como parece dar a entender o Artigo 15º?

"3 – Se após aplicação dos critérios referidos no número anterior se verificar o empate, aplicar-se-ão os seguintes critérios, por ordem decrescente:
a) Experiência obtida em unidades de saúde do SNS, resultante de pelo menos 1 ano de atividade em ETC em cuidados de saúde primários ou em hospitais;"

Não menos importante é o facto de o governo decidir aqui a introdução da média final de curso como critério para selecção, ignorando uma discussão que já dura há anos entre as várias faculdades de medicina e a OM sobre como fazer a ponderação das médias para resolver as diferenças entre os vários cursos.


Ficam muitas questões, mas uma certeza, a de que esta alteração não é no sentido de melhorar absolutamente nada na formação especializada dos médicos, muito pelo contrário. A OM perde poderes, o governo oferece médicos baratos (sejam os internos, sejam os indiferenciados) aos privados de bandeja, afasta-se da responsabilidade de oferecer uma boa formação específica a todos os médicos (ao mesmo tempo que assume a falta de médicos em algumas áreas) e passa ao lado da necessária discussão prévia com os sindicatos e os profissionais da área.

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