Já muito se falou daquele que é o habitual discurso do nosso governo, dos partidos da coligação e dos actores mais ou menos dispersos (ou dissimulados) pelos meios de comunicação social que os apoiam. A famosa e muito ridicularizada "narrativa" de que falou José Sócrates no seu regresso voluntário aos média nacionais não foi só uma desculpa para se fazer de incompreendido, foi também uma constatação do quão moldado está a ser o pensamento dos portugueses (e não só).
É comum a todos os momentos eleitorais ou de especial tensão política e ideológica este investimento numa forma de analisar as situações que insinue conclusões gerais o mais próximas possível do que convém a cada grupo. Não haja aqui contemplações, grande parte dos "actores" políticos está longe de querer ajudar as pessoas a compreender os meandros e os pormenores das situações que comentam. O objectivo primordial é convencer as pessoas de que este ou aquele está "certo" ou de que é o mais preocupado com a situação que fala ao coração do eleitor. Atenção que não digo que isto seja simplesmente por má vontade ou má fé, há que ter em conta que a maioria dos portugueses não tem cultura geral e muito menos conhecimentos específicos que lhe permita perceber a fundo a generalidade das questões discutidas (provavelmente um dos nossos maiores problemas).
No entanto, o que tem ocorrido nos últimos anos parece-me ir além do habitual - o que talvez se deva a estar a vivê-lo por dentro e atentamente - pelo que, ao ouvir há pouco tempo uma pessoa desempregada a dizer que nunca viveu "acima das suas possibilidades", resolvi organizar as minhas ideias e tentar dar algum contributo para a análise desta situação. Nesse sentido vou tentar passar ao lado das habituais picardias inter-partidárias, com o atirar de culpas aos que governaram anteriormente e queixas de falta de colaboração e sentido de responsabilidade, excepto quando relevantes para a discussão. Quero concentrar-me no que me parece especialmente grave no momento em que vivemos: o discurso
orwelliano sobre a crise, a
troika, o ajustamento e sobre as suas relações por um lado com o estado social e, por outro, com a culpabilização individual.
Os exemplos de
doublethink e
newspeak são tantos que nem vou tentar fazer uma listagem exaustiva. Seguem-se casos que bastam para ilustrar esta situação.
Do programa eleitoral ao memorando da troika, das gorduras aos sacrifícios, do controlo do défice pela despesa à busca pelo milagre económico:
Ainda na oposição, Pedro Passos Coelho (PPC) colocou-se contra o malfadado PEC-4 por ser demasiado punitivo para os portugueses. Depois do seu partido negociar, em conjunto com o PS e o CDS, o memorando de entendimento com a
troika, passou as eleições a proclamar uma série de coisas que vale a pena lembrar: que estava bem preparado, que sabia do que o país precisava, que não iria aumentar impostos ou que não reduziria os subsídios de férias/natal. Iniciou a governação a dizer que afinal o país estava muito mal e que o seu programa era o programa da
troika e que se pudesse o levaria "mais além". Enquanto a farsa da culpabilização do país pegou (a discutir abaixo), a conversa manteve-se nesta linha, mas com a descredibilização deste discurso de arranque e principalmente com o abandono de Vítor Gaspar e a demissão "irrevogável" de Paulo Portas (PP), a conversa deu uma grande volta. Afinal, a
troika é muito má, o memorando é uma imposição que o PSD nem queria ou da qual não gosta mas que no fundo ainda acredita que vai funcionar. Portanto, de repente o programa da
troika já não é uma perfeita panaceia, mas ainda é um bom tratamento para o problema de um país que depende de terceiros para o financiamento básico. Fica isolada como principal motivação para tudo isto a confiança dos mercados. Cumprir o memorando de entendimento e nomeadamente as metas de redução do défice passam a ser a única opção para manter a confiança de quem nos empresta dinheiro, enquanto esperamos que a economia recupere. Neste momento começa-se a reconhecer a importância da economia, do produto interno, para pagar a dívida e poder equilibrar o orçamento (até aqui o nosso problema era puramente gasto a mais e nunca produto a menos), mas mantém-se a preponderância do corte na despesa. Quem ouve o governo agora, nomeadamente o irrevogável demitido agora vice-PM, não fica a perceber nada do que se passou até aqui. Diz-se agora que o que importa é o milagre económico, que só com crescimento é que vamos pagar as dívidas, reequilibrar o orçamento, recuperar a soberania financeira. Portanto, o governo que começou por dizer que a única coisa que era necessário era cortar os gastos a mais do estado, "as gorduras" do despesismo socialista, que dizia que não se podia tentar investir na economia porque isso aumentaria a despesa, e depois que não havia alternativa aos cortes, que andávamos a viver acima das nossas possibilidades, vem agora "admitir" que a nossa esperança está na economia. Isto, claro, porque se pode agarrar a meia dúzia de indicadores que apontam para um abrandamento da nossa auto-destruição ou até mesmo um possível início de crescimento económico.
Com isto não quero dizer que as várias ideias acima enumeradas não sejam frequentemente compatíveis, em especial considerando a complexidade da economia de um país e da crise que vivemos; quero no entanto chamar à atenção para a forma como o governo e seus porta-vozes se agarram a cada pormenor, a cada objectivo como se fosse a sua única bandeira, como nunca tentam fazer um discurso integrador e explicativo e, principalmente, como nunca admitem que estavam errados. Ao jeito do partido de 1984 (Orwell é demasiado apropriado para eu conseguir evitar referi-lo repetidamente), os nossos governantes mudam de opinião como se nunca tivessem pensado de forma diferente, como se não devessem explicações a ninguém, como se mantivessem a legitimidade eleitoral obtida com um programa proposto que se evaporou. Claro que, como ainda não vivemos bem na Oceania do livro, o governo lá acaba por ser entalado de vez em quando com um resultado constante: culpa-se o governo anterior por ter deixado buracos, covas, fendas e afins falhas nas contas públicas, tão grandes mas tão bem escondidas que estes vão dando com elas aos poucos, só quando convém. Quando até isto falha, culpa-se o mau tempo. Só falta recorrer ao zodíaco.
A crise - "o que há num nome?!"
A explicação da nossa crise tem passado por um processo semelhante, mas com um impacto que vai muito além da constatação de que temos um governo de mentirosos compulsivos demonstrada acima. Inicialmente a crise portuguesa era consequência da crise internacional. Seguiu-se um período conturbado em que foi dito aos portugueses que a crise era igualmente culpa da governação de Sócrates. Depois disto, caído o governo, o problema deixou de ser só a governação de Sócrates mas as várias governações socialistas. Do outro lado da barricada mantinha-se a teoria do impacto do contexto internacional. Eleito o novo governo, manteve-se o discurso de culpabilização do PS, transportado da crise para qualquer questiúncula parlamentar. Com o passar do tempo, começa a aparecer um outro critério importante, a Europa. Parece que na causa da crise, ou pelo menos como factor agravante preponderante estava uma política de investimento público generalizado e avultado imposta pela União Europeia no sentido de aplacar a crise internacional, indicação esta que foi revogada e invertida pela actuação da troika em vários países e consequente tentativa de unificação do discurso. Agora a crise não era internacional, era culpa do despesismo e preguiça dos países da periferia, especialmente os do sul da Europa.
Temos assim passado os últimos anos com cortes de poder de compra com a justificação de que estamos a resolver uma crise. Mas afinal os sacrificados sabem o que estão a pagar? Percebem o que estão a comentar? Afinal que medidas nos trouxeram a isto? De quem é a culpa? Estamos a resolver os problemas financeiros internacionais que levaram a isto? Ou foi mesmo só culpa nossa e estamos a pagar penitência? Mas quais de nós viveram mesmo acima das possibilidades? Os países do sul têm mesmo que ter condições de vida inferior às do norte porque são essas as suas possibilidades?
Não consigo responder a isto tudo. Não sei o suficiente para ser capaz de o fazer. Sei que alguns destes argumentos são treta, ou são pelo menos mal aplicados: não se pode dizer que vivemos acima das nossas possibilidades e depois corrigir isso nas pessoas com pensões de 1000 euros; não se pode dizer que o nosso problema é défice orçamental e justificar com isso a venda de empresas que dão lucro. O que quero demonstrar aqui é a falta de qualidade do nosso sistema político actual e os seus agentes do costume. Estão a forçar-nos a empobrecer sem nos dar uma explicação satisfatória da situação a que chegámos.
Irrevogável: a palavra do ano
Votei em irrevogável para a palavra do ano 2013 porque achei que depois de ter sido tão maltratada pelo PP merecia uma compensação, uma espécie de prémio carreira, em reconhecimento pelos anos que se aguentou sem que lhe violassem o significado. Se há melhor exemplo de
newspeak português do que uma "demissão irrevogável" que afinal significa promoção - embora sem alteração da ortografia - eu não conheço.
Claro que o problema não é PP ter voltado atrás com a sua decisão. Não é exactamente uma situação agradável para o país (muito menos para a tão importante confiança dos mercados) nem o seria para qualquer indivíduo em tal posição. No entanto, de cara cada vez mais bem lavada, o PP conseguiu demitir-se com pompa e circunstância (faz quase tudo com pompa e circunstância), dizendo que a sua decisão tinha sido tão bem ponderada e era de tal forma séria que era irrevogável. De seguida volta a integrar o governo, desta feita com uma posição de maior relevo e com responsabilidade na execução de um plano com o qual aparentemente discordava (não era precisamente nas medidas difíceis que Portas se baseava para justificar a sua demissão irrevogável?).
Vai-se a ver e afinal só era irrevogável a saída do cargo de ministro dos negócios estrangeiros. Devia haver alguma infestação nas instalações do ministério, tal foi a velocidade com que o novo vice-PM foi em busca de novo poiso. Infestação essa talvez explique as loucuras do novo MNE - alguma febre da carraça - que é de tal forma contraditório com o restante governo que só mesmo pelo exercício do
doublethink podemos perceber que simultaneamente pertença ao executivo de PPC e diga aquelas barbaridades/verdades quando viaja. Entretanto Machete tem estado mais calado: terá sido tratado ou só silenciado? Haverá alguma diferença?
O estado social: gorduras, direitos adquiridos, sacrifícios e insustentabilidade
Uma das coisas que é inevitavelmente discutida em momentos de crise, em especial pela "direita", é o dito peso do estado social. A actual não foi excepção. Inicialmente, em alturas de oposição parlamentar, a direita opta pela acusação de despesismo ao governo socialista. Depois faz cair o governo (não sozinha, de facto) com a acusação de estar a sacrificar os portugueses. Em período eleitoral o discurso tem uma transformação maravilhosa e a direita subitamente parece socialista: os portugueses não aguentam mais; quando estivermos no governo isto vai tudo melhorar; nem pensar em mexer nos subsídios para reparar os estragos do governo anterior; só falta remover as "gorduras" do estado social para compor o país e afins promessas. Chegados ao posto pretendido, a direita no governo começa a regressar ao discurso original: afinal isto está muito mau; o governo anterior deixou isto pior do que pensávamos; vamos ter que fazer sacrifícios; o programa da
troika é o nosso programa de governo. Com a progressão do chamado "ajustamento", conforme as pessoas vão percebendo que as gorduras nunca mais são identificadas e removidas e se vão cansando das desculpas com as surpresas deixadas pela governação anterior, o governo antagonizado cai na culpabilização: as pessoas viveram acima das suas possibilidades; os direitos adquiridos estão a destruir as finanças do estado; as pessoas não querem pagar o estado social a que se habituaram; o estado social é insustentável. À medida que a moral do governo vai sendo desgastada por uma luta contra o que grande parte dos portugueses querem sem qualquer possibilidade de os convencer - sem esquecer o descalabro eleitoral das autárquicas e a aproximação dos próximos momentos eleitorais - chegamos à última fase: a
troika afinal enganou-se; o memorando estava desajustado; temos que recuperar a parcela de soberania que perdemos; estamos em contagem decrescente para a saída da
troika; os cortes e aumentos de impostos são temporários, etc..
Apesar destas sucessivas alterações ao seu discurso, o governo não mudou praticamente nada da sua actuação. Continua o ataque ao estado social, o empobrecimento por redução de direitos e aumento de impostos (que afecta mesmo quem ganha miseravelmente a medir pelos padrões europeus), a transferência de poder económico dos trabalhadores para os patrões (veja-se a preferência pela redução do IRC num contexto de IVA e IRS elevados e sobretaxas afins). Não esquecer a privatização selectiva das empresas que dão lucro ao estado que não faz sentido associada ao discurso de um estado social estruturalmente insustentável: ou justificamos a privatização pela necessidade de livrar o estado de empresas que dão despesa com a esperança que uma gestão privada as regenere (deixo a crítica a esta ideia para outra ocasião) ou privatizamos por ideologia num momento em que o estado pode dispensar o lucro perdido, ou ainda, vendemos por desespero por precisarmos de um influxo de dinheiro imediato que só estas vendas nos possam arranjar (este obviamente não é o caso dado o dinheiro que estamos a perder com as privatizações que já ocorreram).
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Talvez ainda mais grave do que um governo incompetente, é o efeito a longo prazo que esta governação terá. A nível económico prevê-se um longo período até que o país pelo menos volte ao que já foi. Mas a alteração da forma de ver a governação, a sociedade, a constituição, a relação entre os trabalhadores e os patrões, a relação entre os remunerados e os dependentes pode ter consequências ainda mais graves, porque mais profundas, prolongadas e perigosas. Estamos a construir um país de gente descrente na democracia, desligada dos seus representantes máximos, com desprezo pelos partidos e em guerra consigo própria: os trabalhadores contra os subsidiados, os desempregados contra os trabalhadores, todos contra os reformados que "tanto" recebem quando já nem trabalham e contra os políticos, claro. Por outro lado, é uma gente que, talvez pelo desespero aprendido, talvez pela falta de construção de uma mentalidade pró-activa e crítica, se torna relativamente pacata perante os ataques à sua qualidade de vida (ou sobrevivência), o que, a longo prazo, levará a um de dois caminhos: um Portugal de massa amorfa e meia dúzia de gente numa elite governante exploradora ou um Portugal em que já ninguém tem nada a perder e se revolta contra as instituições democráticas. Eu sei que não quero nem um, nem outro. Precisamos, todos, de partidos, políticos, comentadores e jornalistas que saibam falar para os portugueses, não só com honestidade mas com uma linguagem compreensível e coerente, quer se queira pedir sacrifícios, quer se queira considerá-los errados, quer se queira mais estado social ou menos estado social, quer se queira sair do Euro e da União Europeia quer se queira maior ligação com a comunidade ou até federalismo europeu.
Neste caminho arrisca-se tudo.
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