Thursday, 27 February 2014

Penetração, a bem da nação!

Ouvi esta proclamação no Inferno (não morri, mas vejo o Canal Q) e pareceu-me uma das melhores caracterizações da política governamental que temos sofrido que eu poderia imaginar. Senão vejamos o que o governo que foi eleito com a ideia de que o português não aguenta mais nos tem dito e feito, para além do "ai aguenta, aguenta":

- começou por querer foder o estado social, para diminuir o despesismo (sempre se disse que o sexo emagrece, de facto, e eles bem falavam de gorduras);

- seguiu-se o encorajamento aos patrões: enrabem os trabalhadores, que a gente deixa! (e se alguns fugirem, arranjam-se outros, mais baratos, a quem a sodomia custe menos, a ver se aumentamos as exportações);

- houve ainda tempo para mandar os desempregados para o caralho, como quem diz, emigrar à força bruta e, como qualquer violador que se preze, acompanhado do "vais ver que vais gostar", desta feita no formato "isto é uma oportunidade";

- por fim, vêm agora pedir aos portugueses que se debrucem sobre o problema da baixa natalidade (ignore-se tudo o que fizeram antes, sob pena de isto parecer loucura, coitados) - pergunto-me se Passos também vai sortear carrões, a ver se convence os menos "abonados" a dar uso à ferramenta na esperança de um dia compensar as falhas com a aparência, e assim se multiplicar feito Coelho;

Diz que, na Europa, se diz hoje que a prostituição não pode ser uma profissão legalizada - não percebem estes tolos que assim é que nós portugueses parecemos todos desempregados? E se os mercados ouvem?

Sunday, 23 February 2014

Jorge Moreira da Silva e a desvalorização dos discursos eleitorais

Em entrevista à SIC Notícias, Jorge Moreira da Silva, actual Ministro do Ambiente e Vice-Presidente do PSD, diz que neste momento os portugueses "não querem saber quem vai vencer as eleições europeias, ou as legislativas, ou presidenciais; querem saber como é que o país vai passar de uma fase de resgate para uma fase de desenvolvimento, e isso é o essencial. Eu lamento muito, mas eu não quero contribuir com um segundo que seja para aquilo que me parece não ser o essencial. O essencial é crescer, gerar emprego, criar condições para que o país tire partido dos talentos, dos recursos, das infraestruturas, da sua história, da sua língua, e essa é a mensagem de esperança que sai deste congresso."

Aqui está um dos grandes problemas da politica partidária actual, que explica em parte a descrença das pessoas em relação ao nosso sistema democrático representativo. Ora se até este senhor, com responsabilidade no governo mas também a nível partidário, diz que os portugueses, porque preocupados com o futuro do país, não estão interessados em saber quem vai vencer (quero crer que o senhor queria dizer quem se vai candidatar) os três actos eleitorais que se seguem... O que estas frases revelam, ditas quiçá num momento de pouco cuidado e atenção, é uma de duas coisas (ou ambas):
 - que até mesmo na liderança do PSD há um reconhecimento e uma aceitação de que o discurso eleitoral e a imagem da pessoa enquanto candidato têm pouco a ver com as atitudes que são tomadas depois da eleição ganha;
 - que não interessa ao PSD e ao governo que os portugueses atentem nas discussões pré-eleitorais, porque é mais fácil lidar com eles por entre os pedidos de consenso e as despedidas da troika do que abrir caminho a escrutínio bem organizado e publicitado (como poderia ocorrer na campanha).
Depois, dizer que o que lhes interessa é gerar emprego (vejam-se os últimos números do desemprego) e que o país tire partido dos talentos (que mandam emigrar) e das infraestruturas (que privatizam ou param de desenvolver) é de uma hipocrisia dolorosa.

Os portugueses, genuinamente preocupados com o estado do seu país e do seu povo, não podem estar interessados na discussão política do futuro de Portugal e da Europa inerente às eleições europeias. Não podem igualmente querer saber quais as suas opções nas próximas eleições presidenciais, não vá isso aumentar a atenção prestada ao ridículo da nossa presidência da república. Não podem ainda querer saber de nada sobre legislativas, essas eleições absolutamente secundárias para tudo o que passam no seu dia a dia, ano após ano.
O que esta gente tem na cabeça é claro, fala por si e não augura nada de bom para o nosso futuro.

Art (24)


Dementor and Harry Potter
by Skottie Young

Sunday, 16 February 2014

Do ataque à carreira médica e ao SNS

O novo projecto de decreto-lei relativo ao internato de formação específica na profissão médica começa por dizer, no seu artigo 2º, que 

"O internato médico corresponde a um processo único de formação médica especializada, teórica e prática, que tem como objetivo habilitar o médico ao exercício tecnicamente diferenciado na respetiva área de especialização."

Depois trata de preparar um regime que vai obrigar à criação de uma franja de médicos não especializados, sem possibilidade real de fazerem a dita especialização, mas com a devida autonomia de forma a encaixar-se no mundo do trabalho, diminuindo a qualidade e a exigência em relação à profissão médica. Quem pense que isto tem outra pretensão que não enfraquecer a classe médica, piorar a visão geral do seu trabalho, diminuir mais os seus rendimentos, facilitar a médio prazo o ataque ao SNS e a criação de um sistema privado com médicos baratos e sem opções, está puramente iludido.

No artigo 6º, sobre os locais de formação, diz-se

"2 - Os critérios para a determinação de idoneidade dos estabelecimentos e serviços, referidos no número anterior, são definidos sob proposta do CCIM, ouvida a Ordem dos Médicos, por despacho do membro do Governo responsável pela área da saúde.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior e na ausência de parecer da Ordem dos Médicos, a definição dos critérios de idoneidade é efetuada com base na proposta do CCIM, por despacho do membro do Governo responsável pela área da saúde."

Ora isto parece-me a abertura do caminho para ser o governo a poder definir, por si só, a idoneidade formativa de alguns locais. Será isto para oferecer aos privados a garantia de que poderão ter internos? Fica a dúvida.

No artigo 11º, ponto 1

"b) Prestação de prova nacional de seleção;"

Lembro-me de haver uma prova nacional de seriação, resultando numa ordem de preferência, mas não numa selecção de quem pode ou não escolher internato de formação específica.

No artigo 12º,

"2 - O médico que, tendo ingressado no internato médico, opte por se desvincular antes de concluído o respetivo programa de formação especializada, não pode candidatar-se a novo procedimento concursal de ingresso antes de decorrido um período de 2 anos civis, salvo o disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 25.º."

Pergunto, o que farão estes médicos não especializados durante dois anos para seu sustento?

O Artigo 13º retorna à prova:

"1. O modelo da Prova Nacional de Seleção (PNS) é aprovado por despacho do membro do Governo responsável pela área da saúde."

Não era a Ordem dos Médicos (OM) que definia a exigência para a pratica da medicina? E se esta prova não é para isso, então porque raio no Artigo 14º se diz que

"Os candidatos que obtenham na PNS classificação superior a 50% da classificação máxima realizam as suas escolhas de colocação, de acordo com o mapa de vagas divulgado pela ACSS, I.P.."

Teremos nós, potencialmente, médicos que a OM considere capazes mas a quem o governo não ofereça possibilidade de formação? Ou a OM já nem vai ter nada a dizer?

No artigo 21º aparece uma nova dúvida:

"3 - Os médicos internos realizam a formação em regime de exclusividade de funções."

Significa isto que os médicos internos deixam de poder trabalhar noutras instituições, seja isso por interesse curricular, para incrementar rendimento ou para ambos?

A primeira resposta aparece no Artigo 37º:

"6. O regime previsto presente diploma aplicar-se-á na sua totalidade, pela primeira vez, aos médicos que irão realizar a Prova Nacional de Seleção em 2015 e cujo ingresso no internato médico terá lugar em 1 de Janeiro de 2016.Aos médicos abrangidos pelos nos. 2,3 e 4 do presente artigo, o exercício autónomo da Medicina, é reconhecido a partir da conclusão, com aproveitamento, do Ano Comum de formação do internato médico."

Ou seja, os médicos passam a ter autonomia a partir da conclusão do ano comum e, portanto, sem necessidade de qualquer formação especializada. Agora falta ainda saber o que vai acontecer ao certo ao ano comum. Irá ele desaparecer e ser absorvido pela especialidade, como parece dar a entender o Artigo 3º?

"4 - O internato médico é desenvolvido em conformidade com os respetivos programas de formação médica especializada. O programa de formação do 1º ano de especialização deve para o efeito contemplar os itens necessários por forma a assegurar, em pelo menos 80% do programa, uma formação comum a todas as especialidades., agrupadas em dois troncos comuns. Os troncos comuns são cirurgia geral e medicina interna."

E se sim, os próximos médicos serão autónomos à saída do curso? E, portanto, os tais médicos não aprovados na prova de selecção serão trabalho não especializado e mais barato para ser aproveitado? E se sim, será a ideia por médicos a trabalhar em estágios desestruturados e mal pagos (como é costume em Portugal) entre o final do curso e a dita prova de selecção, para depois terem vantagem no desempate, como parece dar a entender o Artigo 15º?

"3 – Se após aplicação dos critérios referidos no número anterior se verificar o empate, aplicar-se-ão os seguintes critérios, por ordem decrescente:
a) Experiência obtida em unidades de saúde do SNS, resultante de pelo menos 1 ano de atividade em ETC em cuidados de saúde primários ou em hospitais;"

Não menos importante é o facto de o governo decidir aqui a introdução da média final de curso como critério para selecção, ignorando uma discussão que já dura há anos entre as várias faculdades de medicina e a OM sobre como fazer a ponderação das médias para resolver as diferenças entre os vários cursos.


Ficam muitas questões, mas uma certeza, a de que esta alteração não é no sentido de melhorar absolutamente nada na formação especializada dos médicos, muito pelo contrário. A OM perde poderes, o governo oferece médicos baratos (sejam os internos, sejam os indiferenciados) aos privados de bandeja, afasta-se da responsabilidade de oferecer uma boa formação específica a todos os médicos (ao mesmo tempo que assume a falta de médicos em algumas áreas) e passa ao lado da necessária discussão prévia com os sindicatos e os profissionais da área.

Art (23)



Comfortably Numb

Saturday, 15 February 2014

Cenas (7)

Hoje recupero uma rubrica do blog que abandonei não sei bem porquê. Aqui ficam algumas "cenas" que encontrei por essa internet fora na última semana que achei interessantes o suficiente para partilhar:

Para começar, um pequeno texto de Daniel Oliveira no Expresso em referência ao sorteio de carros para as facturas com número de contribuinte e que conclui com um pensamento que temo reflectir muito do que vivemos enquanto manda este governo: "E corresponde ao essencial do seu pensamento ideológico: o contributo de cada indivíduo para a comunidade só faz sentido na medida em que isso corresponda a um lucro pessoal."


Segue-se Death by Finance de Dani Rodrik, professor de ciências sociais e autor na área da economia. Deixo-vos um parágrafo que demonstra bem a sua mensagem:
"The deeper problem lies with the excessive financialization of the global economy that has occurred since the 1990’s. The policy dilemmas that have resulted – rising inequality, greater volatility, reduced room to manage the real economy – will continue to preoccupy policymakers in the decades ahead."


Hoje mesmo tive o prazer de ler esta tradução publicada por Pedro Figueiredo de parte de um ensaio de Maria Pia Paganelli: "Learning from Bjartur About Today's Icelandic Economic Crises".


Por fim, partilho uma TED Talk de Jon Ronson relativa à sua pesquisa para o seu livro, The Psychopath Test, que nos deixa uma mensagem interessante não só sobre psicopatas, mas também sobre as reacções dos ditos normais em relação a isso.


Friday, 14 February 2014

East of West Vol.1: The Promise by Jonathan Hickman and Nick Dragotta

Em East of West, Jonathan Hickman e Nick Dragotta misturam alguma ficção científica com um enredo tipicamente fantástico - a besta do apocalipse - de uma forma extremamente importante. Este primeiro volume é uma apresentação das personagens, as suas histórias e motivações e a sua posição num planeta Terra com uma história alternativa. O leitor segue Morte que está aqui contra os seus três companheiros cavaleiros do apocalypse (aqui crianças) e a sua busca por vingança e pela mulher que ama. "Amar até à morte" tem todo um novo alcança em East of West, onde três personagens conseguem destruir exércitos inteiros ou determinar quem é presidente matando todos os restantes "candidatos".
É isto que quero num primeiro volume de uma série: uma história que me deixa curioso sem se revelar demasiado, personagens que de facto quero conhecer (e descobrir o que vão fazer a seguir) e um mundo intrigante, tanto tecnologica como politicamente, que mal posso esperar para ver explorado.
Li esta banda-desenhada inicialmente através do NetGalley, mas gostei tanto que acabei por comprar o volume em papel e encomendar o seguinte. Em East of West, Hickman está ao seu mais alto nível e Dragotta convence-me inevitavelmente, enquanto as suas personagens parecem viver entre o apocalipse e o armageddon.





In East of West, Jonathan Hickman and Nick Dragotta find a way to mix a few science fiction themes with a major typical fantasy plot - the beast of the apocalypse - in a very interesting way. This first volume is a presentation of the characters, their general background and drive and where they stand in this weirdly time displaced, wonderfully confused, alternate history Earth. The reader follows Death who is against his three apocalyptic siblings (here incarnated as children) and his quest for a human woman he seems to love. "I love you to death" gets a whole new meaning and scope in East of West, as a few characters get to murder entire armies or determine the results of a promotion by killing off the unwanted "candidates".
This is exactly what I enjoy in introductory volumes: a story that piques my curiosity without revealing itself too much, characters I really want to get to know, and a world intriguing enough (both technologically and politically) that I can hardly wait to see it further explored.
I got to read this first volume from NetGalley, but I liked it so much that I bought the paperback and will order the next ones This is Hickman at his usual best and Dragotta making me a fan, while their characters live between apocalypse and armageddon. 

Monday, 10 February 2014

Quote / Citação (36)

"I sometimes rise late in the night beset by anxieties, thinking that my heart is about to stop beating; that robbers lurk outside, seeking entry; or a terrible storm is about to send lightning down upon me. 1 am convinced my talent has withered, and I have grown old and foolish; that women laugh cruelly when they speak of me; and all my careful investments have collapsed, leaving me a pauper. 1 imagine that a terrible war has begun that will sweep away all we know, and silent lines of soldiers pass by in the night. I worry that lack of rest will bring my health to ruin.
And then, when I can bear it no more, the terrible, infinite depths of the night sky turn stone gray, and the sun rises again, lifting up above the horizon like a bright promise, and I realize the condition from which 1 suffer is but the human condition. Our solid lives are balanced on the edge of calamity, so much so that we do everything possible never to think of it, for contemplation drives one to despair. Despair that there is nothing we can do except promote the illusion that all is well, though we live with the secret knowledge that this is not so.
We wake in the grip of terror, the night telling us that we are utterly alone, our safe lives nothing but dreams. And our greatest fear of all—that we will be released from this world of anxiety and terror. The sun will not rise on the morrow."


Sean Russell, Sea Without a Shore (1996)

Sunday, 9 February 2014

Art (22)



Cold as Lava

Orwell às voltas na campa: da adesão ao discurso vigente ou a história da narrativa da crise

Já muito se falou daquele que é o habitual discurso do nosso governo, dos partidos da coligação e dos actores mais ou menos dispersos (ou dissimulados) pelos meios de comunicação social que os apoiam. A famosa e muito ridicularizada "narrativa" de que falou José Sócrates no seu regresso voluntário aos média nacionais não foi só uma desculpa para se fazer de incompreendido, foi também uma constatação do quão moldado está a ser o pensamento dos portugueses (e não só).

É comum a todos os momentos eleitorais ou de especial tensão política e ideológica este investimento numa forma de analisar as situações que insinue conclusões gerais o mais próximas possível do que convém a cada grupo. Não haja aqui contemplações, grande parte dos "actores" políticos está longe de querer ajudar as pessoas a compreender os meandros e os pormenores das situações que comentam. O objectivo primordial é convencer as pessoas de que este ou aquele está "certo" ou de que é o mais preocupado com a situação que fala ao coração do eleitor. Atenção que não digo que isto seja simplesmente por má vontade ou má fé, há que ter em conta que a maioria dos portugueses não tem cultura geral e muito menos conhecimentos específicos que lhe permita perceber a fundo a generalidade das questões discutidas (provavelmente um dos nossos maiores problemas).

No entanto, o que tem ocorrido nos últimos anos parece-me ir além do habitual - o que talvez se deva a estar a vivê-lo por dentro e atentamente - pelo que, ao ouvir há pouco tempo uma pessoa desempregada a dizer que nunca viveu "acima das suas possibilidades", resolvi organizar as minhas ideias e tentar dar algum contributo para a análise desta situação. Nesse sentido vou tentar passar ao lado das habituais picardias inter-partidárias, com o atirar de culpas aos que governaram anteriormente e queixas de falta de colaboração e sentido de responsabilidade, excepto quando relevantes para a discussão. Quero concentrar-me no que me parece especialmente grave no momento em que vivemos: o discurso orwelliano sobre a crise, a troika, o ajustamento e sobre as suas relações por um lado com o estado social e, por outro, com a culpabilização individual.

Os exemplos de doublethink e newspeak são tantos que nem vou tentar fazer uma listagem exaustiva. Seguem-se casos que bastam para ilustrar esta situação.

Do programa eleitoral ao memorando da troika, das gorduras aos sacrifícios, do controlo do défice pela despesa à busca pelo milagre económico:


Ainda na oposição, Pedro Passos Coelho (PPC) colocou-se contra o malfadado PEC-4 por ser demasiado punitivo para os portugueses. Depois do seu partido negociar, em conjunto com o PS e o CDS, o memorando de entendimento com a troika, passou as eleições a proclamar uma série de coisas que vale a pena lembrar: que estava bem preparado, que sabia do que o país precisava, que não iria aumentar impostos ou que não reduziria os subsídios de férias/natal. Iniciou a governação a dizer que afinal o país estava muito mal e que o seu programa era o programa da troika e que se pudesse o levaria "mais além". Enquanto a farsa da culpabilização do país pegou (a discutir abaixo), a conversa manteve-se nesta linha, mas com a descredibilização deste discurso de arranque e principalmente com o abandono de Vítor Gaspar e a demissão "irrevogável" de Paulo Portas (PP), a conversa deu uma grande volta. Afinal, a troika é muito má, o memorando é uma imposição que o PSD nem queria ou da qual não gosta mas que no fundo ainda acredita que vai funcionar. Portanto, de repente o programa da troika já não é uma perfeita panaceia, mas ainda é um bom tratamento para o problema de um país que depende de terceiros para o financiamento básico. Fica isolada como principal motivação para tudo isto a confiança dos mercados. Cumprir o memorando de entendimento e nomeadamente as metas de redução do défice passam a ser a única opção para manter a confiança de quem nos empresta dinheiro, enquanto esperamos que a economia recupere. Neste momento começa-se a reconhecer a importância da economia, do produto interno, para pagar a dívida e poder equilibrar o orçamento (até aqui o nosso problema era puramente gasto a mais e nunca produto a menos), mas mantém-se a preponderância do corte na despesa. Quem ouve o governo agora, nomeadamente o irrevogável demitido agora vice-PM, não fica a perceber nada do que se passou até aqui. Diz-se agora que o que importa é o milagre económico, que só com crescimento é que vamos pagar as dívidas, reequilibrar o orçamento, recuperar a soberania financeira. Portanto, o governo que começou por dizer que a única coisa que era necessário era cortar os gastos a mais do estado, "as gorduras" do despesismo socialista, que dizia que não se podia tentar investir na economia porque isso aumentaria a despesa, e depois que não havia alternativa aos cortes, que andávamos a viver acima das nossas possibilidades, vem agora "admitir" que a nossa esperança está na economia. Isto, claro, porque se pode agarrar a meia dúzia de indicadores que apontam para um abrandamento da nossa auto-destruição ou até mesmo um possível início de crescimento económico.
Com isto não quero dizer que as várias ideias acima enumeradas não sejam frequentemente compatíveis, em especial considerando a complexidade da economia de um país e da crise que vivemos; quero no entanto chamar à atenção para a forma como o governo e seus porta-vozes se agarram a cada pormenor, a cada objectivo como se fosse a sua única bandeira, como nunca tentam fazer um discurso integrador e explicativo e, principalmente, como nunca admitem que estavam errados. Ao jeito do partido de 1984 (Orwell é demasiado apropriado para eu conseguir evitar referi-lo repetidamente), os nossos governantes mudam de opinião como se nunca tivessem pensado de forma diferente, como se não devessem explicações a ninguém, como se mantivessem a legitimidade eleitoral obtida com um programa proposto que se evaporou. Claro que, como ainda não vivemos bem na Oceania do livro, o governo lá acaba por ser entalado de vez em quando com um resultado constante: culpa-se o governo anterior por ter deixado buracos, covas, fendas e afins falhas nas contas públicas, tão grandes mas tão bem escondidas que estes vão dando com elas aos poucos, só quando convém. Quando até isto falha, culpa-se o mau tempo. Só falta recorrer ao zodíaco.

A crise - "o que há num nome?!"


A explicação da nossa crise tem passado por um processo semelhante, mas com um impacto que vai muito além da constatação de que temos um governo de mentirosos compulsivos demonstrada acima. Inicialmente a crise portuguesa era consequência da crise internacional. Seguiu-se um período conturbado em que foi dito aos portugueses que a crise era igualmente culpa da governação de Sócrates. Depois disto, caído o governo, o problema deixou de ser só a governação de Sócrates mas as várias governações socialistas. Do outro lado da barricada mantinha-se a teoria do impacto do contexto internacional. Eleito o novo governo, manteve-se o discurso de culpabilização do PS, transportado da crise para qualquer questiúncula parlamentar. Com o passar do tempo, começa a aparecer um outro critério importante, a Europa. Parece que na causa da crise, ou pelo menos como factor agravante preponderante estava uma política de investimento público generalizado e avultado imposta pela União Europeia no sentido de aplacar a crise internacional, indicação esta que foi revogada e invertida pela actuação da troika em vários países e consequente tentativa de unificação do discurso. Agora a crise não era internacional, era culpa do despesismo e preguiça dos países da periferia, especialmente os do sul da Europa.
Temos assim passado os últimos anos com cortes de poder de compra com a justificação de que estamos a resolver uma crise. Mas afinal os sacrificados sabem o que estão a pagar? Percebem o que estão a comentar? Afinal que medidas nos trouxeram a isto? De quem é a culpa? Estamos a resolver os problemas financeiros internacionais que levaram a isto? Ou foi mesmo só culpa nossa e estamos a pagar penitência? Mas quais de nós viveram mesmo acima das possibilidades? Os países do sul têm mesmo que ter condições de vida inferior às do norte porque são essas as suas possibilidades?
Não consigo responder a isto tudo. Não sei o suficiente para ser capaz de o fazer. Sei que alguns destes argumentos são treta, ou são pelo menos mal aplicados: não se pode dizer que vivemos acima das nossas possibilidades e depois corrigir isso nas pessoas com pensões de 1000 euros; não se pode dizer que o nosso problema é défice orçamental e justificar com isso a venda de empresas que dão lucro. O que quero demonstrar aqui é a falta de qualidade do nosso sistema político actual e os seus agentes do costume. Estão a forçar-nos a empobrecer sem nos dar uma explicação satisfatória da situação a que chegámos.

Irrevogável: a palavra do ano


Votei em irrevogável para a palavra do ano 2013 porque achei que depois de ter sido tão maltratada pelo PP merecia uma compensação, uma espécie de prémio carreira, em reconhecimento pelos anos que se aguentou sem que lhe violassem o significado. Se há melhor exemplo de newspeak português do que uma "demissão irrevogável" que afinal significa promoção - embora sem alteração da ortografia - eu não conheço.
Claro que o problema não é PP ter voltado atrás com a sua decisão. Não é exactamente uma situação agradável para o país (muito menos para a tão importante confiança dos mercados) nem o seria para qualquer indivíduo em tal posição. No entanto, de cara cada vez mais bem lavada, o PP conseguiu demitir-se com pompa e circunstância (faz quase tudo com pompa e circunstância), dizendo que a sua decisão tinha sido tão bem ponderada e era de tal forma séria que era irrevogável. De seguida volta a integrar o governo, desta feita com uma posição de maior relevo e com responsabilidade na execução de um plano com o qual aparentemente discordava (não era precisamente nas medidas difíceis que Portas se baseava para justificar a sua demissão irrevogável?).
Vai-se a ver e afinal só era irrevogável a saída do cargo de ministro dos negócios estrangeiros. Devia haver alguma infestação nas instalações do ministério, tal foi a velocidade com que o novo vice-PM foi em busca de novo poiso. Infestação essa talvez explique as loucuras do novo MNE - alguma febre da carraça - que é de tal forma contraditório com o restante governo que só mesmo pelo exercício do doublethink podemos perceber que simultaneamente pertença ao executivo de PPC e diga aquelas barbaridades/verdades quando viaja. Entretanto Machete tem estado mais calado: terá sido tratado ou só silenciado? Haverá alguma diferença?

O estado social: gorduras, direitos adquiridos, sacrifícios e insustentabilidade


Uma das coisas que é inevitavelmente discutida em momentos de crise, em especial pela "direita", é o dito peso do estado social. A actual não foi excepção. Inicialmente, em alturas de oposição parlamentar, a direita opta pela acusação de despesismo ao governo socialista. Depois faz cair o governo (não sozinha, de facto) com a acusação de estar a sacrificar os portugueses. Em período eleitoral o discurso tem uma transformação maravilhosa e a direita subitamente parece socialista: os portugueses não aguentam mais; quando estivermos no governo isto vai tudo melhorar; nem pensar em mexer nos subsídios para reparar os estragos do governo anterior; só falta remover as "gorduras" do estado social para compor o país e afins promessas. Chegados ao posto pretendido, a direita no governo começa a regressar ao discurso original: afinal isto está muito mau; o governo anterior deixou isto pior do que pensávamos; vamos ter que fazer sacrifícios; o programa da troika é o nosso programa de governo. Com a progressão do chamado "ajustamento", conforme as pessoas vão percebendo que as gorduras nunca mais são identificadas e removidas e se vão cansando das desculpas com as surpresas deixadas pela governação anterior, o governo antagonizado cai na culpabilização: as pessoas viveram acima das suas possibilidades; os direitos adquiridos estão a destruir as finanças do estado; as pessoas não querem pagar o estado social a que se habituaram; o estado social é insustentável. À medida que a moral do governo vai sendo desgastada por uma luta contra o que grande parte dos portugueses querem sem qualquer possibilidade de os convencer - sem esquecer o descalabro eleitoral das autárquicas e a aproximação dos próximos momentos eleitorais - chegamos à última fase: a troika afinal enganou-se; o memorando estava desajustado; temos que recuperar a parcela de soberania que perdemos; estamos em contagem decrescente para a saída da troika; os cortes e aumentos de impostos são temporários, etc..
Apesar destas sucessivas alterações ao seu discurso, o governo não mudou praticamente nada da sua actuação. Continua o ataque ao estado social, o empobrecimento por redução de direitos e aumento de impostos (que afecta mesmo quem ganha miseravelmente a medir pelos padrões europeus), a transferência de poder económico dos trabalhadores para os patrões (veja-se a preferência pela redução do IRC num contexto de IVA e IRS elevados e sobretaxas afins). Não esquecer a privatização selectiva das empresas que dão lucro ao estado que não faz sentido associada ao discurso de um estado social estruturalmente insustentável: ou justificamos a privatização pela necessidade de livrar o estado de empresas que dão despesa com a esperança que uma gestão privada as regenere (deixo a crítica a esta ideia para outra ocasião) ou privatizamos por ideologia num momento em que o estado pode dispensar o lucro perdido, ou ainda, vendemos por desespero por precisarmos de um influxo de dinheiro imediato que só estas vendas nos possam arranjar (este obviamente não é o caso dado o dinheiro que estamos a perder com as privatizações que já ocorreram).

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Talvez ainda mais grave do que um governo incompetente, é o efeito a longo prazo que esta governação terá. A nível económico prevê-se um longo período até que o país pelo menos volte ao que já foi. Mas a alteração da forma de ver a governação, a sociedade, a constituição, a relação entre os trabalhadores e os patrões, a relação entre os remunerados e os dependentes pode ter consequências ainda mais graves, porque mais profundas, prolongadas e perigosas. Estamos a construir um país de gente descrente na democracia, desligada dos seus representantes máximos, com desprezo pelos partidos e em guerra consigo própria: os trabalhadores contra os subsidiados, os desempregados contra os trabalhadores, todos contra os reformados que "tanto" recebem quando já nem trabalham e contra os políticos, claro. Por outro lado, é uma gente que, talvez pelo desespero aprendido, talvez pela falta de construção de uma mentalidade pró-activa e crítica, se torna relativamente pacata perante os ataques à sua qualidade de vida (ou sobrevivência), o que, a longo prazo, levará a um de dois caminhos: um Portugal de massa amorfa e meia dúzia de gente numa elite governante exploradora ou um Portugal em que já ninguém tem nada a perder e se revolta contra as instituições democráticas. Eu sei que não quero nem um, nem outro. Precisamos, todos, de partidos, políticos, comentadores e jornalistas que saibam falar para os portugueses, não só com honestidade mas com uma linguagem compreensível e coerente, quer se queira pedir sacrifícios, quer se queira considerá-los errados, quer se queira mais estado social ou menos estado social, quer se queira sair do Euro e da União Europeia quer se queira maior ligação com a comunidade ou até federalismo europeu.

Neste caminho arrisca-se tudo.



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outras postas sobre esta temática algures na blogosfera:
http://arrastao.org/2928343.html
http://arrastao.org/2928653.html
http://365forte.blogs.sapo.pt/a-nova-normalidade-183750

Saturday, 8 February 2014

Quote / Citação (35)

"It is strange to think that I, of all people, became a smith of the language, for my relations with human kind have always been marked by a fundamental lack of commonality, as though I came from a distant land and spoke an alien tongue. I have always looked at my countrymen and thought that they slept as they walked: a sleep without dreams."


Sean Russell, Sea Without a Shore (1996)