Depois de muito recomendada, finalmente a edição d'Os Leões de Al-Rassan em português da Saída de Emergência foi-me emprestada e impingida a sua leitura assim que possível. Obedeci aos espíritos bibliófilos que populam a minha comunidade no twitter e li-o nos últimos 15 dias. Só lhes posso ficar agradecido. Se é verdade que este livro não se tornou num favorito instantâneo, como no caso delas, tenho que admitir que foi uma leitura muito interessante e recompensadora. Não tenho neste momento disponibilidade para lhe fazer uma resenha da qualidade e pormenor merecidos, mas partilho aqui, para os interessados, as opiniões de algumas pessoas que adoraram esta obra de Guy Gavriel Kay: a
Catarina e a
Célia. De qualquer forma, esta é uma fantasia histórica baseada na reconquista da península ibérica aos mouros, sendo Al-Rassan o teritório por eles ocupado, Asharitas os muçulmanos, Jaditas os cristãos, Kindates os Judeus e há até um personagem baseada no El Cid.
Sendo assim, vou limitar-me a referir alguns momentos e temas que não só fazem a leitura atenta valer a pena como me convencem a querer ler outros livros do autor.
Começo pelo primeiro evento que me mostrou que esta leitura ia ser recompensadora, uma conversa entre Jehane e Velaz em que facilmente se percebe que o autor não se limita a fantasiar uma história alternativa, mas que vai procurar utilizar o enredo criado para deixar o leitor a pensar. Jehane é posta perante uma situação em que se opõem valores como a lealdade ao seu povo, a obrigação ou responsabilidade profissional e o seu sentido moral e ético individual. A conversa, em que Velaz tenta convencê-la a não se arriscar, chama à atenção para as consequências da neutralidade e da passividade perante a injustiça.
De forma a evitar spoilers, vou tentar apenas enumerar os restantes momentos chave, em que a prosa de Guy Gavriel Kay está especialmente bem conseguida, de forma a partilha-los com aqueles que já conhecerem o livro: o massacre em Orvilla - em que o autor contrasta a glória e a desgraça da guerra; o Carnaval de Ragosa - provavelmente o apogeu da prosa desta obra; e o incêndio em Fezana - pela tomada de decisão de cada personagem, pelas transformações que a situação opera em algumas delas e pela utilização do fogo como arma de purificação e de terror.
Por fim, é de destacar não só o prazer de ler o epílogo como finalização do enredo, mas especialmente pela forma como o autor foi fazendo acelerar a cadência da história com a aproximação ao clímax e depois, tal qual crise de ansiedade, faz com que o leitor "perca" alguns momentos e consiga analisar os acontecimentos finais somente em retrospectiva.
As temáticas que o autor explora bem com esta obra incluem, tal como esperado, a religião e as consequências da guerra, mas há também uma análise muito bem conseguida da história de uma pessoa tendo em contraste o seu referencial cultural, o seu contexto mutável e a sua auto-imagem e noção de valor e realização pessoal.
Quanto à religião, a história de Al-Rassan ilustra bem como por um lado ela serve para unir grupos e comunidades mas por outro lado por vezes o faz à custa de isolar ou maltratar outros. É também explorada a sua utilização como bode expiatório para a guerra, para motivar o povo a seguir a ganância ou busca por glória dos seus líderes. Há ainda tempo para as personagens serem forçadas a questionar as suas crenças, a sua cultura moral, pelos eventos que acontecem à sua volta.
Quanto à guerra, ela existe aqui, como esperado de uma interpretação da reconquista da península ibérica, como o motor das alterações geopolíticas, mas é explorada principalmente do ponto de vista do seu impacto nas pessoas, não como um grupo mas como indivíduos, como vidas, como histórias, planos, vontades, sentimentos.
Há muito mais a destacar na obra de Guy Gavriel Kay, como por exemplo a visão do médico como pessoa que trata o doente independentemente da nação ou religião, a pessoa que quer ser soldado pela glória mas perde a vontade quando constata a carnificina, a falta de glória inerente à chacina de outros seres humanos, a manipulação típica da guerra, quer quando são os indivíduos a manipular, quer quando são eles os manipulados pelo que acontece à sua volta, a escolha das personagens entre o sentimento de amizade e a honra, o juramento, a lealdade ou a crença e ainda pessoas que se vêem obrigadas a submeter-se ao inimigo, actual ou anterior, para viver, para salvar outros, para amar.
Uma nota final para a tradução (a cargo de João Henrique Pinto) que, se em geral me pareceu muito bem conseguida, teve óbvios tropeços agregados em determinados capítulos cuja leitura foi algo prejudicada. Tenho intenção de ler algo mais de Guy Gavriel Kay, talvez
Tigana ou
Under Heaven, mas, tal como é meu hábito com autores de língua inglesa, irei tentar obter a versão original.
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After being widely recommended, finally a friend lent me her copy of The Lions of Al-Rassan translated to Portuguese. I am quite thankful. Though it didn't become an instant favourite, as was the case with some of my friends, it still was a very interesting and rewarding book to read. This is often considered a historical fantasy work, for its indirect depiction of the wars of reconquest of the Iberian peninsula from the Moor occupiers by the Christians of the north. Al-Rassan represents the Moorish Iberian territory, Asharites are Muslims, Jaddites are Christians, Kindath are Jews and there is even a character based on El Cid.
Because I don't have enough time to write a very detailed and thoughtful review, I'll try to talk about some moments and themes that not only make reading it mindfully worthwhile, but also convinced me to try another of Guy Gavriel Kay's works.
I must start with the first event that showed how rewarding reading this book would be, a conversation between Jehane and Velaz where one easily understands that the author won't just fantasize an alternative history, but will mostly use it to make the reader think. Jehane is in a situation in which she feels the opposing forces of loyalty to her people, her professional obligations and her individual moral and ethics. As Velaz tries to convince her not to risk herself, their conversation brings forward the consequences of being neutral or passive before injustice.
In order to share them with those who read the book, but avoiding spoilers, I'll just enumerate the other key moments where Guy Gavriel Kay's prose is specially well accomplished: the massacre in Orvilla - where the author explores the contrast between the glory and the tragedy inherent to war; the Carnival in Ragosa - probably the epitome of the book's prose; and the fire in Fezana - because of each characters decision, of the transformations forced upon them by the event and the use of the fire as a weapon both of purification and terror.
Last, I must highlight the epilogue, not only because it closes the plot beautifully, but specially for the way the author made the storytelling accelerate with the approximation of the climax and then, as if experiencing an anxiety crisis, makes the author loose some of the crucial moments, being only able to look at and analyse them in retrospective. A mark of a great writer.
As for the themes explored in The Lions of Al-Rassan, they include as expected, religion and the consequences of war, but there is also a well accomplished analysis of a person's story taking into account and confronting her cultural background, her mutating context, her self-image and her idea of valour and personal fulfilment.
On religion, the story of Al-Rassan illustrates quite well how it can unite groups and communities but on the other hand do it while isolating or hurting others. Its use as an excuse for war, as a motivation to get people to follow their leaders' greed and lust for glory. There is still time for the characters to be forced to question their beliefs and morality by all the events happening around them.
On war, its obviously all over the place, as expected of an interpretation of the reconquest, superficially as a motor for geopolitical changes, but more deeply explored from the point of view of its impact on people, not as a group but as individuals, as lives, as stories, plans, dreams, feelings.
There is still more to highlight in Guy Gavriel Kay's work, as for example the perspective of the doctor as a person who helps a patient in need with no regard for his country or religion; the person who dreams of becoming a soldier in search of glory but looses heart before the carnage inherent to real war; the manipulation typical of war, be it when the characters are the manipulators be it when they are the ones manipulated by events around them; the choice characters are put upon, between friendship and honour, oath, loyalty or belief; and people who are forced to submit to their enemies, current or past, in order to live, to save someone they care for, to be with those they love.
A final note for the translation (by João Henrique Pinto, published by Saída de Emergência) that is generally quite well done but with some mistakes mostly focused on few chapters which were slightly spoiled. As I said above, reading The Lions of Al-Rassan convinced me to read more of Guy Gavriel Kay's books, probably Tigana or Under Heaven, but, as is usual with English speaking authors, I'll try getting the original versions.