Thursday, 2 October 2014

Gastos em Saúde - perspectiva individual

Mas então tínhamos que aumentar as taxas moderadoras, porque os portugueses usam demasiado os serviços de saúde porque não pagam, porque é muito barato lá ir, porque há muitos isentos de taxas, sei lá... Olhe-se para aqui com alguma atenção e diga-se, em honestidade, se isto faz algum sentido.


Segundo a Pordata, Portugal é dos países da UE em que as pessoas mais despendem - proporcionalmente - dos seus rendimentos em gastos de saúde. Ora interprete-se: ou as taxas moderadoras não resultaram a inibir as pessoas que recorriam sem razão, ou estamos a taxar demasiado as pessoas que recorrem com razão, ou perdemos tanto poder de compra que as taxas deviam ter baixado em vez de subirem, para que não houvesse este impacto. Em alternativa, podemos presumir que os portugueses ficaram de repente os mais doentes da UE.


Relembro que isto ocorre numa altura em que o mercado de genéricos se implantou e os preços dos medicamentos baixaram consideravelmente. Daí eu focar a minha análise nas taxas moderadoras. A funcionarem, as taxas moderadoras deveriam moderar, ou seja, diminuir o recurso desnecessário ao SNS. A ideia que as sustenta não é a de que devam ser co-pagamentos, ou seja, elas não devem teoricamente ter impacto no orçamento dos utilizadores justificados. Ora, o que se tem verificado é o contrário, como se pode ver em especial desde 2009. Com o impacto da diminuição do preço dos medicamentos, os gastos em saúde poderiam ter diminuído para as pessoas, tal como diminuíram para o estado nas comparticipações, mas bem se vê que isso não ocorreu. Não podemos averiguar com estes números se isto ocorre à custa do aumento das taxas, da diminuição dos rendimentos, ou de ambos, mas podemos, isso sim, voltar ao que disse acima: se há uma perda considerável de poder de compra, é um risco demasiado grande aumentar taxas moderadoras, implantando-as naqueles acessos que devem ser os habituais e correntes, em especial para quem não tem subsistemas e seguros de saúde, nos cuidados de saúde primários.

Serve tudo isto para lembrar como as taxas moderadoras partem de uma ideia utópica que na nossa realidade não tem implantação. As pessoas isentas continuam a poder aceder aos serviços de saúde as vezes que lhes apetecer, tenham ou não motivo. As pessoas com bom poder de compra e daí para cima continuam a poder aceder aos serviços de saúde as vezes que lhes apetecer, e não é o impacto de taxas moderadoras que muda isso, enquanto acharem que têm esse direito ou não sentirem que estão a prejudicar o sistema e as outras pessoas. São os intermédios, aqueles que ganham pouco mais que o limiar para a isenção por insuficiência económica, os únicos que de facto sofrem, os que têm mesmo que repensar as vezes que recorrem aos serviços de saúde, e aqui já não é só nas situações evitáveis, mas mesmo naquelas em que sentem necessidade. Adiam, aguentam, remedeiam, o que mais tarde lhes fará pior a eles e aumentará os gastos ao sistema, a resolver as consequências. As taxas moderadoras são assim, essencialmente, um factor de discriminação e uma tentativa de obter um co-pagamento (como se vê, pouco significativo do ponto de vista do sistema mas potencialmente significativo do ponto de vista individual) à margem do SNS tendencialmente gratuito que a nossa república democrática sempre quis exigir. E são particularmente perniciosas num momento como o que vivemos.


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