No seu artigo de opinião de hoje no Expresso - Luditas e médicos - Martim Avillez Figueiredo (MAF) decidiu que não precisava de se informar antes de criticar a greve dos médicos. Como de médico e de louco, temos todos um pouco, toca a andar que não será difícil escrever qualquer coisa engraçada. Infelizmente, de comentador-opinador também temos todos um pouco, mas há, tal como na saúde, os que o fazem bem e os incompetentes.
MAF brinda-nos com uma comparação entre os médicos e os luditas - aqueles que na implantação da revolução industrial lutaram contra a sua substituição por máquinas - numa tentativa de ridicularizar o protesto, associando-o simultaneamente a corporativismo e a inutilidade. Claro que logo aqui cometeu um grande erro, na sua falta de compreensão da história dos luditas, que dificilmente permite paralelo com a situação actual dos médicos, e ainda bem. O acto de estupidez, como ele apelida a oposição dos luditas à industrialização, só pode ser visto assim com um distanciamento histórico e confusão de contextos. É que os luditas não lutaram por lhes serem modificadas condições de trabalho ou ligeiras perdas de remuneração ou qualidade de vida. Os luditas estavam a ser substituídos pela máquina, perdendo totalmente o emprego no qual se tinham especializado e consistia o seu único ganha-pão, para serem substituídos por máquinas e respectivos operadores muito mal pagos. Isto numa altura em que ainda não havia estado social, ainda não havia segurança social. Estas pessoas, numa luta infeliz contra um progresso que é hoje fácil apelidar de positivo, estavam afinal a tentar resguardar a sua subsistência num mundo em que estavam condenados à pobreza, à exclusão, ao abandono total se perdessem o emprego. No início do séc XIX, não podíamos esperar que os artesãos sequer pudessem depositar as suas esperanças no facto de que o aumento de produtividade viria a aumentar os empregos e a qualidade de vida. Isto porque, antes disso, esse aumento de produtividade precisou de destruir carreiras e portanto, vidas. Houvesse estado social para os almofadar e as coisas poderiam ter sido diferentes.
Mas bem, chega de história, até porque o meu ponto é que a comparação é muito mal feita. Por um lado, porque os médicos não estão em risco de ser substituídos um a um, aliás, em muitos casos lutam contra a acumulação de funções e exigências a cada profissional, completamente desadequadas da realidade. Por outro, porque os médicos não são ignorantes do que se passa, e por isso não andam a partir máquinas nos serviços de radiologia dos hospitais, mas a discutir medidas, uma a uma se preciso for. Há ainda que ter em conta que o "emaranhado legislativo" - que na sua ignorância MAF toma como único motivo de greve - dificilmente pode ser interpretado como progresso civilizacional.
De resto, vamos ao que importa. MAF usa tudo isto para fazer uma crítica ao corporativismo. Mais um erro. Por um lado, porque não é verdade que este tenha sido um protesto corporativo - veja-se a quantidade de associações que manifestaram o seu apoio aos médicos depois de conhecerem as suas exigências - nem tão pouco que seja uma questão de associação com a CGTP. Quanto a isto, vamos por passos: a FNAM não faz parte da CGTP; a UGT apoiou a greve tal como a CGTP; não há nenhum mal em ter a CGTP a associar-se ao protesto, aliás, faz sentido; a greve tem vindo a ser proposta aos sindicatos pelos próprios médicos, fartos de tanta treta do Ministério, não foi nada que nos caísse no colo de repente porque apeteceu à FNAM (ou a qualquer outro manipulador). Por outro lado, porque a associação corporativa faz sentido. Não é, como MAF dá a entender, uma simples forma de silenciar massas e transferir poder a quem já o tem, a não ser que funcione muito mal. Os sindicatos e a Ordem, que se podem dizer corporativos de formas diferentes, ambos têm funcionado bem como representantes dos médicos perante a tutela, essa sim a precisar e muito de contra-peso. MAF decerto não pensa que os médicos foram fazer greve feito robôs comandados pelos lideres sindicais. Diz isto apenas para poder desvalorizar o protesto, como aliás várias vozes públicas têm tentado fazer nos últimos tempos. Por fim, mais uma vez, na tentativa de reduzir a greve a uma questão corporativa, volta a esquecer-se de ir ver os seus motivos, e deixa, quase em tom de aviso, a lembrança de que o corporativismo serve para estabilizar uma classe, de forma que não suba nem desça considerável ou abruptamente na escada social e acusa os médicos de usar a vida dos outros para proteger a sua. Aqui, para além de ignorante ou mentiroso (não o conheço para saber ao certo qual das duas), MAF torna-se insultuoso. Este protesto teve algumas exigências relacionadas com questões laborais, sem dúvida, mas foi essencialmente (e por isso mereceu o apoio de associações de utentes) um protesto contra a perda de qualidade do nosso SNS, no que se relaciona com estrutura, instituições, profissionais, regulamentação, material, condições, etc.. Os médicos não usaram a vida dos outros, os médicos protestaram por verem no dia a dia que estas politicas estão a pôr a saúde dos portugueses em risco. Há ainda a questão da lei da rolha, que por si só justifica todos os protestos que se possam fazer e o apoio de toda a sociedade civil, não fosse essa luta, no fundo, uma luta pela manutenção do estado democrático e das liberdades individuais que conquistámos. Contra a censura e a desonestidade da tutela podemos e devemos estar sempre todos unidos.
Não há nenhum problema em estar contra os motivos dos médicos. MAF, e bem, é pelo menos claro nisso, dizendo que não é contra o direito à greve mas apenas contra o que acredita serem as motivações desta. Há um enorme problema em publicar comentários à acção de protesto sem se conhecer o que está em causa ou fingindo que não se conhece. Um artigo de opinião não é uma reportagem ou um ensaio, mas exige ao seu autor a mesma seriedade, a mesma honestidade intelectual, a mesma preparação sob pena do autor se tornar um simples fazedor de opinião, daqueles que só prejudicam quem os lê enquanto não são expostos e aí, a haver justiça, relegados a uma posição em que deixem de ter a sua coluna à disposição para dispersar as suas tretas.
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