José Manuel Fernandes, publisher e administrador do Observador, publicou hoje um comentário ao bastonário da Ordem dos Médicos (OM) intitulado "O Mário Nogueira do estetoscópio". O título em forma de gozo, usando o nome de um para classificar o outro, já dá a entender da falta de qualidade do mesmo, mas como diz respeito à minha profissão, fiz o esforço de ler.
De facto o título está muito bem conseguido, o texto deve ser todo ele uma brincadeira de mau gosto. É que tenho JMF por uma pessoa informada e capaz, ainda que discorde do seu pendor ideológico, e por isso me recuso a acreditar que isto seja mesmo para levar à letra, senão vejamos.
Diz JMF a certa altura que "José Manuel Silva, o bastonário da Ordem dos Médicos, está sempre zangado, quase sempre indignado e também ele já nos anunciou tantas vezes que o Serviço Nacional de Saúde estava em vias de acabar que só esperamos que seja mais certeiro quando faz o diagnóstico dos seus doentes. Porque nem o SNS acabou, nem vai acabar, mesmo que ele faça coro com um outro sindicalista eterno, também ele Mário, o Mário Jorge Neves da FNAM, o sindicato médico da CGTP.". Ora, nem o bastonário tem uma postura irascível, como dá a entender - mas admito percepções distintas - nem anda por aí a anunciar o fim do SNS. Até porque há uma grande diferença entre defender o SNS de ser piorado, prejudicado ou diminuído e ser arauto da desgraça. Se o fim do SNS fosse inevitável, aí sim, estaríamos todos a anunciá-lo sem qualquer pretensão de mudança. A questão é que ainda vamos a tempo, e bem a tempo, de proteger o SNS de quem o pretende destruir, não no sentido de o fazer desaparecer, mas no sentido de o tornar menor, quiçá mínimo, para o substituir por outra coisa qualquer. Sendo assim, só pode ser jocosa esta aproximação do discurso do bastonário da OM de um sindicalismo de oposição como faz decerto quando vai buscar a CGTP (ainda por cima com erro factual, a FNAM não é filiada na CGTP). Não lhe peço para entender o papel essencial dos sindicatos na balança de poder, de forma que deixe de achar prejudicial a sua existência ou a sua oposição (de formas e intensidades diferentes) aos movimentos de um governo que tem querido diminuir os direitos e seguranças dos trabalhadores de praticamente todas as áreas profissionais, isso seria demais. Mas pelo menos pode dar uma vista de olhos aos comunicados e discursos da Ordem e dos Sindicatos e detectar as diferenças. Mais, a estar devidamente informado, saberia até que a OM tem tido reuniões com os médicos e respectivos sindicatos onde as questões que são sindicais são deixadas aos seus representantes sem intervenção da OM, cujos líderes opinam e debatem apenas aquelas que dizem respeito à área de acção de uma ordem profissional.
Há que lembrar que como certificadora da profissão médica, a Ordem tem que prestar atenção não só ao que os profissionais sabem e fazem para que possam exercer medicina, mas também às condições que lhes são impostas, que podem igualmente ser impeditivas ou gravemente limitadoras do seu correcto e pleno exercício. Não esquecer também que a OM tem estado em constante processo de negociação com o governo, não tem dado apoio a outras acções sindicais e só neste momento opta por ter esta postura, que explica muito bem nos comunicados que são públicos. O Ministério não tem cumprido as suas promessas, tem vindo a adiar ou complicar as decisões que se compromete a tomar enquanto vai avançando com as que lhe interessa, por vezes sem consultar quem devia. Um exemplo recente deste tipo de manobra é o projecto de decreto-lei sobre o internato médico a que me referi aqui, que retiraria poder e função à própria OM.
O aproveitamento que faz do facto do Sindicado Independente dos Médicos não apoiar a greve é igualmente brincadeira. Porque se podemos usar um sindicato que não apoia para dar a entender que a greve ou a iniciativa não faz sentido, então podemos fazer o contrário, dizendo que o SIM não está a funcionar bem porque a FNAM anuncia greve e é apoiada por várias estruturas médicas não sindicais e por muitos sindicalizados do próprio SIM e este isola-se sem grande explicação quanto aos vários pontos apresentados como motivo de greve. Até porque, diga-se, a greve não é uma quebra definitiva de negociação, a greve é uma demonstração da gravidade de certas medidas ou propostas, que levam os profissionais a fazê-la, no sentido de mostrar ao governo que está a governar contra os governados.
Segue JMF dizendo, em relação à acusação de que a degradação do SNS é uma opção política, que: "Este retrato da Ordem não casa bem com a realidade. Basta olhar para alguns números. Em 2013 a taxa de mortalidade infantil desceu, o mesmo sucedendo com as taxas de mortalidade perinatal e neonatal, tudo indicadores seguros de que não há degradação dos cuidados de saúde, pelo contrário. Ao mesmo tempo, em 2012, a esperança de vida dos portugueses, calculada pelo INE, voltou a subir, pelo que parece que o ministro não anda por aí a matar velinhos. Mas há mais: registou-se nos últimos anos uma diminuição do tempo de espera para cirurgias em geral e realizou-se o maior número de sempre de transplantes pulmonares e cardíacos, só para referir duas frentes de actividade do SNS." Ora, lá está JMF mais uma vez a mostrar o seu jeito para o humor. Por um lado porque traz dados de indicadores que evoluem a longo prazo, cujas variações anuais são pouco ou nada informativas e, como é o exemplo da esperança de vida, dados que só ilustrarão o momento que vivemos dentro de alguns anos. Há ainda que verificar que as taxas de mortalidade que refere desceram comparativamente ao ano anterior mas não atingiram ainda os valores de 2010. Para manter a piada, ainda finge que não se lembra que há bem pouco tempo tivemos um relatório do Observatório Português dos Sistemas de Saúde que demonstra bem o impacto da crise e medidas a ela associadas e que termina da seguinte forma:
"Em suma, parece ser evidente e à semelhança do que afirmámos em anos anteriores, que estamos perante um conjunto de dados que indiciam o impacto negativo da crise sobre a saúde das pessoas. Ou seja, está a acontecer o que era expectável. Apesar disso, não se vislumbram sinais indiciadores de uma política intersetorial de saúde que tenha como objetivo monitorizar indicadores de impacte e acautelar ou minimizar os previsíveis efeitos da crise, nomeadamente nos grupos mais vulneráveis.
Ao invés, parece ser evidente um manifesto esforço quer da UE, quer do governo português, de negar a evidência do impacte da crise sobre a saúde das pessoas e negando-o, evitar a discussão e consequentemente a adoção de medidas de prevenção e/ou de combate. Tal atitude poderia até ser apelidada de síndroma de negação.
O único senão é que do outro lado estão pessoas em sofrimento e com um desenvolvimento cada vez mais hipotecado tal como se percebe pelos dados apresentados."
Para completar, esquece-se de dizer que os médicos estão a lutar em muitos casos contra propostas, algumas que nunca chegaram a efeito por terem sido combatidas em devido tempo, outras que estão em discussão agora mesmo e que, portanto, teriam resultados no futuro, a adicionar a estes.
Uma outra temática muito dada a comédia é a interpretação. Aqui, JMF faz este brilharete: "Eu traduzo: a Ordem está incomodada por terem sido apanhados médicos nas operações de combate à fraude no SNS. Curiosamente este é um ponto que também faz parte da mais recente tomada de posição da FNAM. Ou seja, a Ordem e a FNAM não acham que o problema seja a existência de fraudes, antes estas serem noticiadas pela comunicação social." Claro que a OM, a FNAM e os médicos em geral estão preocupados com as fraudes. Neste momento, para além de estarem preocupados com as fraudes que têm relação directa com a sua actividade, as fraudes de médicos ou dos serviços de saúde, estão também preocupados com fraudes na comunicação social. Não é por acaso que as notícias que podem ser prejudiciais à imagem pública dos médicos se multiplicam quando se aproxima uma greve, em especial quando se referem a dados antigos, constantes ou periódicos. Só se justifica isto de duas maneiras, ou o governo usa alguma influência junto da comunicação social e esta verga-se, de forma a manter o seu poder negocial apesar da greve, ou a comunicação social fá-lo independentemente de pressões, por não ser isenta mas ter a sua própria identidade ideológica e política. Não será alheia a este estado das coisas a formação de um blogue em formato de jornal para disfarçar o arcabouço ideológico com trabalho jornalístico, como muito leitores mais assíduos que eu se têm referido ao Observador.
Diz ainda JMF: "Uma Ordem devia ser um lugar sereno e um bastonário alguém que se escuta com atenção porque tem coisas importantes a dizer – não alguém que exorta todos os médicos a “suspenderem a colaboração com o Ministério da Saúde, ACSS, ARS, DGS, Infarmed, Hospitais e ACES, bem como de quaisquer outros Grupos de Trabalho”. Como se pode escrever isto e, ao mesmo tempo, considerar que a Ordem é um “provedor do doente” e está a defender o SNS ultrapassa a minha compreensão.". Que as pessoas associadas ao governo preferem serenidade perante as suas medidas, já sabemos. Que compreender que defender o SNS pode tornar necessária uma luta mais efectiva, nomeadamente ao nível da colaboração com as entidades enumeradas acima, de forma a mostrar ao governo o quão grave é a situação, ultrapassa as suas capacidades, ficámos a saber. Aliás, logo abaixo no seu texto chistoso, JMF mostra também não compreender a relação entre a preocupação com as horas de trabalho, os descansos compensatórios e "temas afins" e a defesa do SNS. Por ventura pensará que não há qualquer relação entre os serviço prestados e as condições de trabalho dos médicos, ou então foi só mais uma piada a que não achei graça.
Bem, termino por aqui a minha resenha da comédia do blasfemo que dirige o Observador. Mantenho que só pode ser um texto jocoso, porque - recusando-me a acreditar que alguém tão experiente e informado como José Manuel Fernandes não perceba o que expliquei acima - a alternativa seria considerar este artigo o resultado de uma tentativa de descredibilizar os médicos recorrendo a desonestidade intelectual.
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Update: A Ana Matos Pires decidiu ilustrar isto e repor a verdade, aqui no Jugular.