Tuesday, 1 April 2014

No dia das mentiras, nada como apelar à memória

Para celebrar o dia das mentiras, decidi ir revisitar um texto que escrevi como reacção à formação do nosso actual Governo, na sua apresentação original. Na altura, talvez acicatado pela revolta em relação à eleição "desta gente" (para usar a linguagem corrente), talvez pelo desespero de saber o quão mal seriam os anos seguintes, decidi tentar analisar escolhas para cada cargo do "mais pequeno governo de sempre". Claro que não acertei em tudo, mas é no mínimo engraçado pensar que isto foi escrito no facebook antes de tudo o que aconteceu desde Junho de 2011. Divirtam-se:


XIX Governo Constitucional de Portugal

18 June 2011 

"Abre-se o pano, ligam-se as luzes, senhores e senhoras: as bestas estão finalmente à vista desarmada.
Se quanto ao PM não há dúvidas, o governo que a direita nos cozinhou tem algumas surpresas nas quais vale bem a pena atentar.

O co-governador, Paulo Portas, lá conseguiu ser Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, onde tem a visibilidade nacional e internacional que suporta o seu ego e a pasta que, segundo a comunicação social, ele preferia. Ele estará satisfeito, mas estaremos nós? Quereremos nós um homem da direita conservadora a opinar por Portugal la fora? Será que a maioria de facto concorda com a visão de Portas? Lembro que as eleições já passaram e que ele não está na pasta onde poderia continuar os seus discursos populistas sobre os "pobres agricultores". Eu sei que não. Mas cá estarei, atento.

Daqui para a pasta em voga, o Ministério das Finanças. Quem teremos a substituir Teixeira dos Santos? Vítor Gaspar é um conhecido "europeísta", já tendo trabalhado com o BCE, tendo representado o Ministro das Finanças na altura do Tratado de Maastricht e mais recentemente tendo pertencido à BEPA. É um homem decerto informado, com bagagem para uma pasta destas, mas sabendo o que foi dito e de acordo com o discurso do PM, não me parece que fará muito mais do que abanar a cabeça às ordens do FMI-BCE tanto quanto possível, feito brinquedo na traseira de um carro com a suspensão demasiado laxa. Veremos se não leva as "políticas de austeridade" ao extremo, naquele exagero megalómano típico dos portugueses, que têm a mania que conseguem ser fenomenais e imbatíveis mas só nas coisas mais estranhas.

Por falar em austeridade, mais um apoiante destas políticas foi incluído no governo e claro, na pasta da Economia e do (Des)emprego. Uma leitura na diagonal do seu blog dá a ideia de um reformista acérrimo, mas aparentemente não tão cego em relação ao debate empréstimo do FMI / reestruturação como as gentes dos partidos eleitos. No entanto, pelo comentário que fez em relação aos efeitos do plano do FMI nos próximos anos, não me parece que vá fazer muito mais do que o que eles mandam e tentar, tal como o PM, ser o bom aluno da Europa, a planear défices 0 para 2016 com o Gaspar independentemente do que isso implique para a economia e o emprego nacionais (afinal, a sua pasta).

Já que comento o desemprego que aí vem, porque não falar também da agricultura, mar, território e ambiente? Porque Assunção Cristas, licenciada em Direito, dá a sensação de ter sido eleita como tacho para o CDS e não me parece vir a ter muito a dizer na orientação das áreas que o seu ministério se propõe regular e pode ser tão somente uma marioneta do Paulo Portas. O futuro o dirá e espero que me surpreenda.

A única outra mulher a integrar os altos cargos deste governo será Paula Teixeira da Cruz. Não a conheço bem o suficiente para prever o que fará no Ministério da Justiça, mas pelo menos neste caso a formação em Direito e o percurso no Conselho Superior da Magistratura, Conselho Geral da Ordem dos Advogados e no Conselho Superior do Ministério Público fazem sentido. Espero comentários de alguém mais informado do que eu sobre tal pessoa, cujos discursos na comunicação social nunca me pareceram valer a pena ouvir até ao final ou recordar. Resta alguma, mas pouca, esperança.

Há três tachos muito previsíveis de que vale a pena falar em conjunto: José Pedro Aguiar-Branco na Defesa Nacional, Miguel Relvas nos Assuntos Parlamentares e Miguel Macedo na Administração interna. Podiam estar aqui como noutro sítio qualquer, mas tinham que aparecer e cá estão. A medir pelos discursos que lhes conheço, serão do pior que pode haver e pouca diferença faria trocá-los de pasta. Medo? Muito medo.

Tacho por tacho, lembrar o do nascido e criado na JP, cuja formação em direito e legislação laboral o terá preparado muito bem para assumir um dos mais difíceis cargos governamentais nos próximos anos, a Solidariedade e Segurança Social. Talvez tenha sido por ter pertencido à Comissão de Saúde e Toxicodependência que se lembraram dele, talvez não. Alguém da direita conservadora nos assuntos sociais não augura nada de bom para os portugueses, mas sejamos honestos, se fosse um jotinha do neoliberalismo travestido de social democracia seria melhor? Provavelmente não. É o parente pobre, cada vez mais pobre do estado português.

Por falar em cada vez mais pobre, falemos da saúde. Aqui está uma área da qual sei falar não só mas também por que lhe pertenço por formação académica e actual emprego. Por esta altura já todos saberão que Paulo Macedo é vice-presidente do conselho de administração de várias empresas do grupo BCP, incluindo, claro, a Médis. Sabendo isto, sabendo que é formado em organização e gestão de empresas e sabendo o que Pedro Passos Coelho planeia para a Saúde, concluir que vem aí desastre é fácil. É provável não só o corte nas despesas da saúde que acontece até por imposição externa, mas parece agora que ele será cego, matemático, ignorante do que significa o serviço nacional de saúde e das necessidades dos portugueses. É também provável que, ao mesmo tempo que se dá os passos necessários para oferecer a saúde deste país de bandeja ao sector privado, se inicie o processo de permitir a formação em medicina nas universidades privadas. A medir pelo resultado da abertura de outros cursos no ensino privado como são bons exemplos a enfermagem, a psicologia e até a medicina dentária, não só não haverá garante de formação de qualidade como não haverá controlo de vagas, pelo que a medicina ficará no estado em que estão as restantes profissões da área e que é francamente mau, com muito mais formados do que oferta de emprego, com as cunhas a ser critério de escolha acima de qualquer outro e com a fuga dos mais desesperados ou dos insatisfeitos que não se conformem (e bem) para o estrangeiro. E se prevejo piores condições para os médicos e as mesmas ou ainda piores para os restantes trabalhadores desta área, o que dizer do que acontecerá aos utentes do SNS? Serão contabilizados na comentada taxa de sacrifício para "salvar" a pobre economia e perderão a pouca qualidade de vida que ainda tenham, sem grande preocupação dos senhores das finanças que mandam lá no cimo da pirâmide das classes sociais. Faremos os possíveis, enquanto pudermos, mas não serão mantidos bons cuidados de saúde com ainda menos recursos e com um gestor a mandar no ministério.

Nuno Crato, na educação, parece ser o nome em que mais pessoas têm esperança. Será que ele vai por ordem na Educação que tanto tem sido maltratada, tendo que acumular também o Ensino Superior e a Ciência? Tenho mais esperança nele do que tinha em Isabel Alçada? Sim. Mas sabendo que terá poucos recursos e muitas necessidades para malabar, tenho dúvidas. Só posso desejar que Nuno Crato não seja mais um puro burocrata ou populista e se lembre das 3 pastas, não só da educação por estar mais em voga.

Por último, e apesar de não valer ainda a pena falar de Pedro Passos Coelho, é necessário lembrar o seu secretário de estado da Cultura, Francisco José Viegas, outro senhor em quem se tem depositado alguma esperança mas cujo trabalho será mais provavelmente um desespero. Saber de perto as necessidades múltiplas e profundas deste sector, ter vontade para agir e estar permanentemente limitado por ser secretário de alguém que tanto desvaloriza o papel essencial da cultura hoje e sempre não pode ser bom. Boa sorte, para si e para a cultura em Portugal.

Assim se iniciam as próximas festividades, assim continua a luta (não sei com qual alegria), assim se cavam mais uns metros cúbicos de areia na vala comum deste povo à beira-mar plantado. A ver vamos."

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