Há muito a dizer de bom sobre a reforma dos cuidados de saúde primários (CSP) em Portugal. Os utentes utilizadores são quase unânimes em referir melhor serviço, mais facilidade em marcar consulta, maior rapidez em obter renovação de receituário, melhor acesso a cuidados no próprio dia, melhor trabalho em equipa entre secretários clínicos, enfermeiros e médicos, mais acções de abertura para a comunidade, melhor organização. Os próprios profissionais de saúde em geral estão contentes (foram, aliás, eles mesmos que iniciaram este processo) e o orçamento de estado ainda poupa recursos, dado estar bem fundamentada uma redução de gastos em saúde das populações vigiadas em unidades de saúde familiar (USF) a médio-longo prazo muito superior ao aumento das remunerações dos profissionais.
Há coisas cujo benefício é menos certo. A remuneração por incentivos, por exemplo, é um principio que a meu ver podia ser aplicado a muitas áreas, é difícil um modelo mais justo do que pagar ao profissional com um salário base associado a uma bonificação pelo seu desempenho profissional (aqui avaliado por determinados indicadores). No entanto, os incentivos não são uma panaceia. Por um lado, por serem usados de forma diferente nos vários grupos profissionais na unidade. Por outro lado - e esta é a questão essencial - os próprios indicadores e a sua negociação podem tornar-se prejudiciais à prática clínica que é, afinal, do que tudo isto se trata. Há indicadores que fazem sentido, mas outros que, pelo que implicam a nível de trabalho burocrático ou de alteração de prática, acabam por se tornar contraproducentes ou totalmente errados. A título de exemplo, pode-se referir o controlo de gastos: ao longo dos anos a exigência a nível de redução de custos com prescrição de exames ou medicamentos tem sido ininterruptamente crescente e a negociação quase inexistente. Chega-se a absurdos de ter USF a diminuir média de gastos anuais por utente para a níveis 50% inferiores a outras noutra região. E qual é o critério para definir os gastos? Parece ser somente a diminuição em relação a anos anteriores, em vez de um real cálculo de necessidades de acordo com a população inscrita na USF (proporção de diabéticos, hipertensos, idosos, etc.). Outros indicadores, como por exemplo os que se relacionam com a proporção de utentes com vigilância adequada, parecem bons no sentido da efectivação dos cuidados de saúde que se pretendem, em especial numa visão de saúde pública, mas trazem consigo problemas que se verão a longo prazo. Este tipo de indicadores implica da parte da equipa da USF um esforço constante no sentido de convocar os utentes a consulta, reconvocar após falta, telefonar se falta trazer algum resultado de análise que seja importante. Ora isto traz um óbvio benefício instantâneo, mas um malefício mais tardio: os utentes habituam-se a deixar a sua vigilância depender da iniciativa da USF. Tendem, a médio-longo prazo, a desresponsabilizar-se da sua própria saúde. Não faz sentido passar cada consulta a convencer uma pessoa de que é da sua iniciativa que depende a sua saúde para depois andar a correr atrás dele porque ainda não veio medir a tensão arterial nos últimos seis meses.
Outro problema da reforma dos CSP é governo PSD/CDS. Desde que entrou em (dis)funções, este governo quase paralisou o processo, atrasando a criação de USF, a sua passagem ao modelo B (o que implica pagamento por objectivos) e agravando os problemas com a negociação de indicadores em linha com o que especifiquei acima. A vista curta de quem governa para o saldo do ano corrente ou do défice programado para o ano seguinte resulta muitas vezes em medidas que, a longo prazo, nos prejudicam a todos. Os CSP são só um exemplo, mas grave que baste.
Hoje decidi resumir esta questão porque há um novo problema nas USF que não vejo este governo a resolver de todo. As USF são formadas com base num compromisso de vigilância, uma quantidade de pessoas que se propõe a vigiar, que constituirão a sua população inscrita, dividida por listas de acordo com os médicos da unidade. A título de exemplo, uma unidade com 5 médicos propunha-se vigiar 5 listas de cerca de 1700 utentes, ou seja, 8500 pessoas no total. Ora, estas listas eram calculadas de acordo com a actividade prevista para um médico de família com uma lista "típica", sendo ele depois remunerado de forma diferente de acordo com a proporção de pessoas com necessidade de maior vigilância ou com as actividades específicas que vai cumprindo de ano para ano. A questão é que, fruto da muito necessária limpeza das listas - parece que é desta que vão mesmo levá-la a cabo - uma lista de 1700 utentes começará a responder mesmo a 1700 utentes reais, sem erros, sem utentes transferidos, mortos ou emigrados. Por outro lado, a acção deste governo tem levado ao empobrecimento da classe média e ao crescimento do desemprego que arrastam muitos doentes que faziam a sua vigilância na medicina privada para uma dependência do que lhes é oferecido no SNS. O resultado de tudo isto é que a vigilância de 1700 utentes numa USF hoje implica muito mais tempo e esforço do que quando esses valores foram estimados. É portanto essencial uma reavaliação destes números, da exigência a nível de indicadores e da remuneração correspondente. Neste momento, em vez de se exigir aos médicos de família listas de 1700 a 2000 utentes (daqui para cima dificilmente há aumento de remuneração), o limite inferior deveria ser reduzido para pelo menos 1500. Se nada se fizer, um médico que queira cumprir os objectivos que lhe são exigidos (esqueça-se a ideia de negociados, porque não há negociação de metas para além de variações marginais) terá necessariamente que reduzir a oferta de alguns tipos de serviços menos controlados pelos indicadores ou em alternativa passar a trabalhar muito mais horas, com a correspondente perda de qualidade do serviço prestado (para além da óbvia injustiça que é criar um esquema em que o profissional acaba obrigado não por decreto mas por condicionalismo a trabalhar muito mais que 40 horas, algo que, por sinal, já ocorre em muitas situações no SNS).
O problema é maior quando sabemos da forma como este governo tem gerido a relação com as instituições que representam os médicos e com a profissão em si, como comentei
aqui e
aqui. Valerá a pena sequer tentar que este problema seja percebido pela tutela? Infelizmente, já não tenho qualquer confiança neste governo, não acho que valha a pena tentar qualquer tipo de acordo e, aliás, tenho até receio de chamar à atenção para um qualquer problema, não vão os ministros de Passos ter mais uma ideia peregrina e piorar tudo mais um pouco. A dissonância entre o que é preciso fazer e o que se faz, entre o que se espera de um ministério e o que nos calhou, entre a realidade e a regulamentação que se vai impondo é tal que parece distopia. Fico à espera de um próximo governo que, não se verificando a hipótese terrível de um bloco central, deverá ser menos mau ou quiçá bastante melhor que o actual - pior é difícil de imaginar. Há que começar a discussão e informar as pessoas - o resto virá a seu tempo. Aguardemos.